O Cão - O Dia

Dois dias.

Esse é o tempo que levou para encontrarem o corpo empalidecido da jovem Beth.

Ela tinha apenas 15 anos. Saia todo dia às 17h para ir para o cursinho de moda e no caminho parava na padaria da Marli e me comprava um pão doce com creme no meio. Uma delicia. Era a melhor pessoa que morava aqui no bairro.

Em um dia qualquer, ela saiu para o cursinho pontualmente às 17h, foi comigo até a padaria, comprou o mesmo pãozinho, porém naquele dia ela me deu algo mais. Me entregou um lenço e amarrou no meu pescoço, me disse que voltaria mais tarde pois ia no shopping com as amigas. Realmente era algo fora da rotina, mas ela não fazia coisas erradas. Era super bem criada. Com certeza estava tudo bem.

A noite chegou fria. Uma chuva ameaçava com seus rugidos em trovões e sua ira em relâmpagos. Eu estava procurando abrigo em meio as caixas de madeira velhas da quitanda da esquina. Perto do ponto de ônibus. Foi então que vi Beth descer, estava perfeita sorria alegremente, mas seu sorriso não era para mim. Havia outra pessoa com ela. Era um homem, mais velho que ela. Nunca o havia visto ali. Estava de preto. Com uma mochila de uma alça só. Usava óculos, e não pude enxergar seus olhos. Mas sua presença me alertou. Comecei a segui-los, meio de longe.

Eles riam muito, a rua estava vazia e podia escutar os sussurros mais baixos.

- Você é muito linda sabia? - falava o estranho. - Poderia seguir carreira em moda, como uma modelo. - Ele alisou o ombro dela enquanto andavam.

- Você viaja - Beth respondeu rindo. - Eu não tenho o menor jeito pra ser modelo. Prefiro desenhar as roupas para elas desfilarem mesmo. - Agora ela quem afagava a mão dele sobre o ombro dela.

- Desde o dia que você entrou na sala do cursinho eu já via um grande potencial seu, e com seus desenhos ficou ainda mais nítido.

- Obrigada Nick - Nick era seu nome real? Ou apenas um apelido?. Tudo que sei é que eles pararam um quarteirão antes de chegarem na rua dela. Eu parei logo atrás sobe a sombra do poste. Ainda conseguia ouvi-los.

- Obrigada por hoje.

- Eu que agradeço Beth - ele ajeitou o cabelo dela atrás da orelha e finalmente tirou os óculos. - Você é demais.

Eles se olharam mais um pouco. Ele começou a se reclinar sobre ela e ela começou a ficar nas pontas dos pés. Um beijo inocente, que incendiou o frio da noite naquele dia.

Ele não a acompanhou mais, sumiu na noite indo em outra direção. Eu não mais o farejava ali. Ela estava abobada. Pulava e cantarolava. Eu a segui mais um pouco e parei alguns metros da casa dela, fiquei observando Beth subir a rua, e virar a ultima esquina antes de sua casa. Me virei e pus-me a andar antes da chuva. Foi quando um raio caiu na rua, o estrondo me deixou surdo e extremamente assustado mas mesmo assim, ainda pude escutar o grito de Beth.

Mesmo com medo, fui correndo ver o que ouve. Virei a esquina e ela não estava lá. Farejei seu cheiro e foi seguindo. Cortei a rua, e vi alguém arrastando ela para perto dos terrenos baldios que haviam deixado o mato tomar conta. Eu corria e latia para alertar a rua e assustar quem a arrastava, eu estava cheio de raiva, ninguém tocaria na minha Beth, mas minha raiva e o raio de antes me deixaram desatento e não vi quando uma moto veio em alta velocidade e eu no meio da rua fui atropelado. Me custando uma pata que jamais voltará a ser como antes.

Começou a chover e o motoqueiro não me prestou socorro, na medida que também não viu quem arrastava uma garota para dentro de um terro abandonado, cheio de mato. Eu não consegui andar, e me arrastava na rua. Eu conseguia escutar muitas coisas. Uma delas era a chuva forte, os trovões ao longe e chegando mais perto. Escutava também o som de pancadas fortes. E de gritos abafados. Eu tentei chegar Beth precisava de ajuda, eu chorava para alguém ouvir, latia, rosnava, uivava, mas ninguém veio. Ninguém apareceu.

Quando eu consegui chegar na calçada a figura de um homem alto e forte passou sobre mim. Eu mordi sua perna, tão forte quanto consegui. O gosto do sangue daquele ser estava em minhas presas. Ele me acertou um chute e um soco e outro chute, esse que me deixou completamente zonzo.

O desgraçado fugiu. Mas eu gravei seu cheiro. Mesmo naquela chuva, eu jamais esqueceria.

Ainda me arrastando, encontrei Beth deitada, estava com suas calças baixas até os joelhos. Sua blusa rasgada. Cheia de marcas nos braços, sua boca havia sido tampada com panos o suficiente para sufoca-la. Seus olhos ainda mexiam. Ela estava respirando, fraco mas respirando. Chorava e tremia. havia um corte enorme em sua garganta. O cheiro de sangue em todo o lugar. Eu cheguei perto dela, mordi o pano que lhe tampava a boca. Mas ela não conseguia gritar ou falar, eu lati mas uma dor forte me fez grunhir e baixar o tom. Ela inclinou a cabeça para me olhar, a sua mão chegou a me acariciar, e eu pude ver seus olhos deixarem o Adeus.

Encoberta por mato e lama, a unica coisa que pude fazer foi ficar ali e chorar, uivei por toda a noite, na chuva que durou uma eternidade. Até perder a voz, e dois dias depois, uma policial, de pelo negra, cabelos presos, nos encontrou, ela chorou ao ver Beth. E disse chegando perto de mim que mesmo sem voz, tentei latir com uma pata e costela quebrada - Você é um bom garoto ficando ao lado dela.

Policial M. Covas, se pudesse me ouvir, saberia que eu falhei como cão. Eu não pude salva-la. Beth estava morta e o homem que a matou estava vivo.

Eu falhei, fui um péssimo Cão.