O cara do churrasco

O cara do churrasco é um cara solitário; a parada dele é uma parada solitária. As carnes dos bichos mortos não falam, não importa se bem ou mal passadas, e enquanto todo mundo faz o diabo que for que as pessoas fazem durante uma churrascada, ele busca o ponto e o corte perfeito da carne; não pode haver erro e qualquer hesitação é fatal. O cara do churrasco é um ser obcecado pela perfeição. O cara do churrasco é um artista; não se aproxime dele quando ele estiver “criando”, pode ser perigoso pra cachorro. (Hum, churrasco de cachorro... boa ideia, baby. Deve cair muito bem com cerveja coreana.)

O que acontece é que o cara do churrasco também tem uma vida, apesar desse tipo de coisa não se parecer com ele. Mas a sua vida está longe de ser uma vida normal, mesmo sendo. Quero dizer, a sua vida é uma vida anormal dentro de uma vida normal, pois ele, o churrasqueiro, é um ser anormal e divino; um ser especial tocado pela Mão Que Tudo Cria E Destrói E Faz Churrasco Cósmico, negão. Daí que O problema de uma churrascada no domingo, das 10:30 às 21:30, debaixo de chuva mais ou menos grossa, com a sinusite atacada e de ressaca do porre do dia anterior, é que existe o dia seguinte. Se você é o cara do churrasco e trabalha de pé o dia todo numa barraca de feira vendendo bananas, ou na linha de produção de alguma coisa, ou numa loja de calcinhas (como o cara do churrasco aqui), ou sei lá a porra que você faz, então não é nada legal. Você fica com aquela ressaca de fumaça de churrasqueira impregnada de restos de gordura e resquícios de carvão de 7 anos atrás (simplesmente não dá para se limpar totalmente uma churrasqueira) e uma dor nos nervos do pescoço daquelas de fazer ver estrelinhas – dor essa que se estende até a ponta dos dedos porque você ficou doze horas de pé virando as carnes num raio de churrasqueira indigna da sua arte, enquanto tentava meter um tapa na cabeça do seu sobrinho pentelho que insistia em ficar espetando o seu rabo com o garfo das asinhas de frango. Também fica com a ressaca de cigarro, cerveja e Dreher que o seu tio-avô-primo trouxe e fez você beber com limão só pra te ver fazendo alguma bobagem do tipo imperdoável. Ressaca em cima de ressaca e mais a ressaca do dia anterior não é nada legal, my friend, mas o cara do churrasco still stands. O cara do churrasco ama o que faz, não importa quanta dor seja obrigado a aguentar no dia seguinte, negão.

Agora, se você, cara do churrasco, ao menos pudesse dormir direito depois de uma churrascada dessas, tipo chegar em casa e cair na cama e tudo o mais, talvez sentisse menos dor; mas não, você não pode porque está com a barriga cheia demais e uma dor de cabeça pior do que o aspirador de pó da sua mulher maluca ligado num domingo de manhã. Fica rolando na cama de um lado para o outro durante quatro horas, com os distúrbios de tripla personalidade de churrasqueiro piscando flashes de sexo e violência e carne chamuscada na sua mente fritante, gritante, gritando, e, quando finalmente consegue pegar no sono, tem que se levantar correndo para vomitar quatro vezes seguidas – e é aquele vômito que queima. Daí que quando volta para a cama, não consegue dormir mais. Mas você é o cara do churrasco, e o churrasco vale qualquer sacrifício. O churrasco em primeiro lugar e o cara do churrasco em segundo, sempre foi assim. O cara do churrasco sempre carregou a sua pesada cruz churrasquenta; pau no cu das noites em claro e todo o resto, negão.

E então no dia seguinte... lá pelas 14:30 se fodendo no trampo... você mal consegue se manter em pé sem suar frio e ficar enxergando vultos pretos nos cantos da vista. Vai até o banheiro e cochila no cantinho por vinte minutos, quando então desperta com a voz do seu chefe — que tem um mau-hálito tenebroso e pelos demais escapando do nariz que é tipo um morango defeituoso — gritando pelo seu nome no corredor. Você se levanta e vomita pensando na feiura do mau-hálito do seu chefe gritando pelo seu nome [isso mesmo que eu disse, caralho, “feiura do mau-hálito. Foda-se que você não achou bonitinho]. Com dificuldade, vai até a pia lavar o rosto. Seu reflexo é a palidez e a oleosidade do rosto da morte em pessoa; tem grandes olheiras, veias saltadas nos lados da cabeça e um corte no lábio inferior. Sente vontade de vomitar novamente, mas não consegue, não tem mais nada para vomitar – conseguiria, no máximo, uns cuspezinhos de nada, então nem tenta. E finalmente você se toca que talvez o caso seja pegar um pouco mais leve daqui pra frente. Só que você nunca faz isso. Você é o cara do churrasco, e o cara do churrasco nunca pega leve. Pegar leve é para o cara dos refrigerantes ou o cara do karaokê, esse tipo de bobagem não é com você. Mas talvez você até tente (pegar mais leve) nas duas primeiras horas da próxima vez em que tiver a oportunidade de mostrar a sua arte, mas aí, na terceira, alguém sempre chega com uma garrafa de Dreher ou rabo de galo e mais alguma coisa bizarra que você tem que experimentar de qualquer jeito antes de cair da laje – onde é feita a churrascada – e arrebentar a cabeça no chão, depois se levantando tendo o rosto lavado de sangue, como se não fosse nada, só porque Deus sente muita compaixão por todos os churrasqueiros bêbados desse mundão véio sem porteira. É que o cara do churrasco não pode e nem deve recusar bebida. Recusar bebida, na Bíblia dos Churrasqueiros, é pior do que recusar mulher. Cara do churrasco que é cara do churrasco sabe como é.

Bem, mas o real problema é que para cada domingo existem seis dias de aporrinhação e nenhuma chance de assar uma carne. Esse é o maior problema da humanidade, seu maior pecado, e também é por conta disso que um dia tudo isso vai acabar em churrasquinho cósmico, vadia.

De volta para casa totalmente ferrado da cuca e com a alma liquidada, você mal tem tempo de tirar o sapato, quando o raio do telefone toca. É um conhecido. Provavelmente seu tio-avô-primo sem dentadura dizendo "Feu filho fa fufa, fofê femfra fo fe fofê afronfou fonfem?". E, churrasco de corações de frangos te mordam, você não se lembra de coisa nenhuma depois do sétimo copo de bombeirinho com halls e cinzas de cigarro e charutos mofados baratos. Quase sempre bateu na cara de alguém ou estourou os dois faróis da frente do carro de outro, ou tentou beijar a boca da esposa do irmão mais novo, mostrou a piroca dura para sua sobrinha ou para a sua neta, essas coisas. Ou simplesmente abriu o berreiro ali no meio de todo mundo após destruir o bolo do aniversariante com uma voadora – dando a desculpa de que só queria acertar a velinha. Fica achando que nunca mais vai ser convidado para churrascada nenhuma, nem para churrascada fúnebre de velório de cachorro de avó-prima doida, mas tem sempre alguém que não conhece a sua fama ou que gosta de ver a coisa pegando fogo, ou que precisa ver alguém mais digno de dó do que ele próprio (isso é o que ele acha...) cagando no pau, ou alguém que você não sabe por que cargas d'água te acha um cara legal – mesmo após você ter entupido a pia da casa dele com vômito azedo. E é um desses aí falando com você no telefone nesse momento (mais especificamente aquele seu amigo sem noção que tem mania de ficar pegando no seu pênis quanto você está distraído, depois dando a desculpa de que “Oxe, era só uma brincadeira brother, relaxa aí, pega mais uma latinha”). Além do que, o cara do churrasco nunca pode se recusar a fazer um churrasco, essa é a nossa sina. E então não há mais nada a ser feito senão se resignar e aceitar o próprio destino. "Sim, eu vou, pode contar comigo. Levo um engradado de doze", você diz, tentando soar como alguém que se desculpa e que superou velhos fantasmas do passado. Desliga, dá uma mijada e uma cagada mole de jabuti, tira a roupa, bebe um pouco de água, apaga a luz, se deita. E tenta dormir um pouco. Antes de pegar no sono, fica se sentindo vazio, maluco, homicida e envenenado; cheiro de churrasquinho pairando no ar e tudo. É dura a vida do cara do churrasco; é pesada a sua cruz, é bruto o seu mundo.

Gilberto Sakurai ~O Maldito Escritor~ 2010

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Gilberto Sakurai
Enviado por Gilberto Sakurai em 11/08/2016
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