O despertar de Ramon

Ramon acordou do coma de uma vez, sem preliminares – nenhum tremelique, nenhum som gutural nojento saindo da boca, nada –, simplesmente abriu os olhos e se viu sozinho num quarto cheirando a limpeza, com a televisão ligada, uma sonda presa a alguma parte do seu corpo, embaixo do lençol, o brilho de um céu opaco, que podia ser tanto de início quanto de fim de qualquer dia do ano, penetrando sorrateiro pelas frestas de uma cortina verde-necrotério deprimente... “O que é isso?”, gritou Ramon, mas ele não ouviu sua voz, que soou para dentro, como um choque, um espasmo, uma onda de dor em vários níveis, que começou na garganta e terminou nas solas dos pés. Ramon não perguntou ‘Quem sou eu’ porque ele sabia quem ele era, sua consciência de si tinha voltado tão rápido quanto seu corpo, seus movimentos, seus reflexos – ali estava ele, Ramon, atônito, os olhos grudados na televisão, que mostrava uma competição de ginástica artística, um solo perfeito de uma negra linda dando saltos e piruetas incríveis. Mas Ramon não entendia... Onde estaria? Num hospital, certamente, mas... por quê? Ele não se lembrava.

O fato é que ele tinha acordado. E estava bem. Pelo menos era o que ele sentia. Mexeu as mãos, os pés, as pernas, o pescoço. Verificou a sonda. Não entendeu aquilo, mas não se preocupou. Alguma coisa tinha acontecido para ele estar ali, mas... “Foda-se”, disse Ramon, e dessa vez ouviu sua voz, forte, vibrante, alegre. Ramon sentia-se muito bem, curado de qualquer infortúnio que o tivesse posto ali: um acidente, um infarto, um tiro, um AVC, o que fosse. E a ginasta negra continuava dando seu show na TV, segura de si, voando veloz e caindo em pé, reta como um espeto, firme, perfeita.

O passado de Ramon ainda não tinha voltado à sua mente com clareza, mas ele sabia que seu trabalho era chato, que tinha mulher e filhos, que vivia frustrado, esperando sua vida dar uma guinada – o que não acontecia, “porque”, pensava Ramon, “as coisas normalmente não caem do céu”. Mas ali estava ele, lembrando-se aos poucos do seu trabalho no banco, do seu chefe carrasco, de suas idas e vindas pela cidade como um zumbi, infeliz, sempre cabisbaixo, pensando em se matar... Só que agora, deitado numa cama de hospital, ligado a alguma máquina por uma sonda misteriosa, sentia-se bem, confiante, forte, vitorioso. Alguma coisa tinha acontecido... Um choque. Um trauma. Uma explosão que o jogou para fora da angústia em que vivia... O que teria sido?

Foi aí que Ramon viu uma outra ginasta em cena, loira, de olhos azuis, também linda, usando uma roupa vermelha e branca. Na virada final de um salto ela se desequilibrou e caiu de lado na lona: PUM! E Ramon, como se das sombras escuras de uma noite profunda surgisse uma luz, viu: ele também tinha caído... alguém ou alguma coisa o fez cair... e bater a cabeça... Na mesma hora ele levou a mão à cabeça e sentiu a faixa, o curativo... Devia estar sedado, por isso não sentia dor.

Imagens do passado ressurgiam em sua mente, e a cada nova cena ou pessoa que ele via, mais certeza ele tinha de que mudara, de que a pancada lhe fizera bem, porque nunca tinha se sentido tão forte e confiante, tão alegre e jovial como naquela cama de hospital. Ramon estava pronto para recomeçar, para dar, ele próprio, a guinada que antes ele esperava cair do céu como chuva de estrelas. “Foda-se”, disse de novo, dessa vez quase gritando, e sorriu, satisfeito, pronto para pular daquela cama e mudar de vida. Foi quando entraram sua mulher e seus filhos e o abraçaram forte. “Você voltou!”, disse a mulher, sorrindo. “Sim”, respondeu Ramon. “Estou de volta...”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 12/08/2016
Código do texto: T5726274
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