Nada mal

Noite passada sonhei com música clássica dentro de uma sala escura e enfumaçada. Bela, minha namorada, minha noiva, minha garota, minha mulher, minha esposa, minha sei-lá-o-quê também estava no sonho. Era um piano sendo tocado de forma meio enlouquecida e monótona; eu procurava prestar atenção, mas quanto mais eu tentava descobrir que raio de música era aquela, mais sono eu sentia. E então acabei dormindo dentro do meu próprio sonho. Bem a minha cara maluca esse tipo de coisa. Esse tipo de coisa que vive acontecendo comigo...

Já quanto a sonhar com as mães gostosas dos meus amigos de infância enfiadas em vestidinhos vermelhos e voando de pernas abertas pra cima de mim, esqueça.

Quando acordei, foi com a musiquinha irritante do celular de Bela; uma daquelas musiquinha da Maria Daocú, a nova geniasinha da musiquinha brasileira feita para matar os mosquitos de sono e os verdadeiros compositores da MPB (aqueles cachaceiros irascíveis de antigamente) de desgosto profundo e vomitante — falo de vômitos de uísque e charutos e cocaína e patê de foie grass e livros chatíssimos que leram e coisas chatíssimas que conversavam com seus amigos pseudo intelectuais sem pau.

Era bem cedo e eu fiquei enrolando até acabar cochilando de novo, e depois Bela veio me acordar daquele jeito dela, sacudindo a minha pesada cabeçorra nipônica de um lado para o outro, dizendo “Acorda, bebê, acorda... acorda, bebê preguiçoso, acorda”. Pode parecer meio ridículo esse negócio de “bebê”, mas eu te juro que é um sarro gigantesco porque você nunca viu essa mulher brava, mostrando os dentes feito um macaco dos infernos e mastigando algum saquinho de plástico que voava por aí... isso tudo só para não arrancar e mastigar os globos oculares de algum filho da puta fodido.

“Merda”, reclamei, lutando para arrastar o meu traseiro de bebezão para fora da cama.

Levantei, não consegui cagar, coloquei um chiclete na boca (ao invés de escovar os dentes como um ser humano mais ou menos normal que ainda liga para as coisas), joguei gel nesse meu cabelo que mais parece grama do que cabelo — bagunçando-o o máximo que consegui —, vesti as mesmas roupas do dia anterior e fui para a sala fumar uns cigarros mentolados enquanto esperava que a princesinha se arrumasse, o tempo todo pensando que ia ter problemas porque não tinha conseguido cagar. Enquanto fumava, fiquei pensando que eu tinha que parar de fumar, como sempre.

Ao término do segundo cigarro, já ia acendendo um terceiro, mas Bela apareceu e eu disfarcei, colocando o negócio de volta no maço — ela fica putíssima quando eu começo a comer cigarros feito um escritor maldito ou um pedreiro cheio de marcas de varíola no rosto ou um dentista sociopata que usa óculos fundo de garrafa e é sustentado pela mulher, principalmente numa manhã ensolarada de sábado. Demos comida para os cachorros com perfume de mendigos e saímos. Havia um cheiro muito gostoso de lençóis limpos pelo corredor todo — que eu achei que vinha dos cabelos de Bela. Depois me lembrei de que Bela não tinha lavado os cabelos na noite anterior. Para falar bem a verdade, acho que ela não lavava os cabelos havia quatro dias, então o cheiro só podia ser dos produtos de limpeza que a faxineira do condomínio usara para limpar os corredores.

Tirando o carro da garagem, a novela. Eu, como de costume, quase subindo na guia; Bela, como sempre, já começando a tagarelar do meu lado; o portão automático da entrada, como sempre, não abrindo, e Bela tendo que afundar o dedo naquela porcaria de controle, estragando mais ainda o negócio já tão estragado de outras viagens.

Sem trânsito a caminho do serviço dela — Bela trabalha aos sábados, e eu também, mas eu havia tirado uns dias de folga para fazer umas coisas que precisava fazer (mas eu não estava fazendo nada, daquele meu jeito de não fazer absolutamente nada quando tenho um monte de coisas para fazer). Várias ultrapassagens duplas, tão na manha que ela nem reclamou. No rádio ligado na estação de rock clássico tocava alguma música imbecil. Mudei para a estação de música clássica e a coisa estava pior ainda. Ópera. Brega. Então voltei para a estação de rock clássico. O refrão da música que tocava, traduzindo, era tipo “Você... você me chupou a noite inteira!”.

Na verdade não era suck, e sim shook.

You shook me all night long.

Mediocridade lírica e musical pra nenhum músico de brega universitário botar defeito. Brega.

O que Caetano diria?

“Sei não... estou pensando em gravar um novo disco com a Maria, o que você acha, Sakurai?”

“Fala a verdade, Caetano, ela tá te comendo, não tá?”

“Rapaz, esse negócio de comer é muito subjetivo...”

Aham.

Deixei Bela em frente a uma padaria na esquina do local onde trabalha, pensando em também parar para tomar um café em algum lugar — mas era tarde demais e os carros já avançavam em cima de mim; buzinas, poluição, gente com pressa demais para ir de encontro à própria morte, quero dizer, shopping centers, casamentos, churrascos na casa do cunhado, parques ensolarados, almoços em lugares caros — recheados de imbecis que não sabem falar direito com o garçom —, motéis que tem teto solar, piscina e churrasqueira, cinema com a família... tudo morte, tudo morto, e tem gente que adora pregar que tudo está em seu devido lugar. A minha missão era ir até o mercado trocar o varal que não servira — não por causa do tamanho, mas porque tinha que ser daqueles dobráveis, pois o teto do apê de Bela, que, segundo o zelador do pedaço, corre o risco de desabar se for pendurado algum peso nele. Eu sei que isso é balela, que o cara apenas está com preguiça de fazer o serviço a troco do dinheiro da pinga, pois Bela, Bela é do tipo que não molha a mão de ninguém, exceto quando mando ela fazê-lo — e ela faz com uma cara muito emburrada. Teve uma vez que ela teve coragem de dar quinze centavos de gorjeta para algum desgraçado...

No mercado eu e a minha pança ficando meio gorda de olhão arregalado na vitrine de salgados da pequena praça de alimentação; também de olho numa gostosa tomando um café junto com uma amiga. Olhei tanto que o café dela acabou virando.

Consegui encontrar o raio do varal dobrável — eu já estava com a notinha da troca; tinha passado no depto. de trocas antes. Aproveitei para comprar uma garrafa de Coca-Cola Zero, e isto porque não posso abusar de açúcar, o médico disse que estou ficando diabético, “quem bebe despreza coisas doces”, disse uma tia minha certa vez, como se eu fosse alcoólatra ou algo do tipo, e na bebida alcoólica o que não falta é açúcar, se você não sabe, portanto nada a ver uma coisa com a outra. Comprei também um ovo de páscoa para um amigo secreto do qual eu meio que fui obrigado a participar.

Nisso o meu estômago começou a atacar. Não era tipo a merda batendo na portinha do cu, mas ia acabar chegando lá. Então eu parei de bosta e me apressei até os caixas. Não sei por que caralhos eu escolhi o da fila de quinze volumes por clientes, sendo que só havia três funcionários atendendo nela e uma fila que dava duas voltas. Sempre ajo de maneira extremamente imbecil quando o negócio é pensar rápido. Fiquei lá segurando aquele peso todo na fila — sempre esqueço-me de pegar a porcaria do carrinho ou a cestinha —, tendo um japonês velho atrás esbarrando em mim e um estúpido fodido com a barba e o cabelo do Wolverine na frente (oh, Diabo, meu pai, com quantos idiotas desses eu ainda terei que lidar até que a morte, aquela que é tão forte, venha me buscar??). Estou sendo dramático demais, naturalmente; minhas mãos não ficaram pingando sangue, dilaceradas pelo peso das sacolas e eu também não peidei molhado nem caguei nas calças, mas é que eu sou dramático mesmo, e algumas pessoas até me adoram por causa disso — quando perguntadas, elas dizem que não sabem que é por causa disso, mas eu sei que é por causa disso. Oh puta que pariu, ao invés de escrever eu podia era tentar a carreira teatral ou política, ou até mesmo a porcaria da igreja. Ou quem sabe gravar um disco de MPB.

Saindo de lá, passei na casa da minha mãe só para cagar — caguei muito, muita merda dos mais variados tipos e tamanhos (merda de uma garrafa de vinho no dia anterior às vezes sai assim) — e tomar o café feito por ela. Também peguei uma chave de fenda emprestada para montar o varal na casa de Bela. Não consegui dar um beijo na minha mãe, pois ela estava trancada dentro do quarto da pintura, pintando mais um quadro maluco, cheio de cores e formas, daqueles que ninguém consegue entender muito bem — exceto outras pessoas que também pintam, como os amigos dela.

De novo na rua decidi parar de frescura e levar o carro para lavar. Eu não queria levar o carro para lavar porque estava com medo que estragassem o resto da pintura da porta, que eu tinha feito o favor de arregaçar numa viga dentro de um estacionamento quando dei uma dormindinha ao volante. Escolhi um daqueles postos da Ricardo Jaffet, um que eu sempre vou que fica ao lado da Esfiha Imigrantes, lugar que a partir das 10:50 da manhã começa a ficar lotado como se estivessem dando alguma coisa de graça lá dentro — vai assim até altas horas da noite. Escolhi esse posto exatamente por causa da casa de esfihas. Quero dizer, eu e a minha pança ficando gorda escolhemos.

“Vou ali do lado e já venho aí”, avisei um dos caras que lavavam os carros.

“Pode ir lá, filho, fica sossegado lá.”

Detesto quando um cara que tem menos de oitenta anos de idade vem me chamar de filho. Caralho, eu só queria que esses caras lessem alguma das coisas que eu escrevi, só pra ver do que eles iam me chamar então.

Ainda estavam lavando o lugar, era bem cedo e tal. Desviei de algumas mangueiras pelo caminho e me encostei no balcão, pedindo uma esfiha de carne e uma de calabresa.

“Pra beber alguma coisa?”, o cara me perguntou. Eu disse que não. Eu tinha uma garrafa de Coca-Cola Zero que era só eu colocar no freezer quando chegasse no apê de Bela e esperar um pouco até gelar.

Levaram cinco minutos para que as esfihas ficassem prontas — lá é tudo feito na hora —, tempo que foi mais do que suficiente para me deixar doido pra tomar um chope. Como todo mundo parecia ocupado demais com alguma coisa, esperei que o cara viesse trazendo as minhas esfias para pedir.

“Já tem chope aí?”, perguntei.

Já tinha.

Ah, ninguém faz esfihas como aqueles caras; tendo um copo de chope e pimenta daquelas que ardem para sair então... Café da manhã dos campeões para Kurt Vonnegut nenhum botar defeito, baby.

Enquanto comia, a porcaria do meu estômago dizia que eu estava pegando pesado demais.

“É mesmo, seu sacana?”, eu disse pra ele, e mandei mais esfiha, chope e pimenta malagueta pra cima do desgraçado.

Paguei e caí fora.

Meu carro — na verdade o carro de Bela — ainda não estava pronto, então fiquei fumando uns cigarros enquanto esperava. Todos os caras que lavam carros por lá têm cara de quem já puxou alguns anos de cadeia, ou que fazem algum tipo de bobagem e uma hora ou outra vão acabar puxando — dentre eles, duas lésbicas que você tem que prestar muita atenção para ver que se tratam de mulheres; aquelas sobrancelhas riscadas e cortes de cabelos masculinos e tudo. Gosto do estilo deles e é por isso que eu sempre levo o carro para lavar nesse lugar — coisa que eu faço de seis em seis meses (deixa eu explicar: o negócio não fica todo emporcalhado porque eu lavo o carro de graça sempre que chove).

Sentados a uma mesa vermelha de plástico havia três caras que levavam o maior jeito para paus pra qualquer obra, a mesa repleta de latões de cerveja, dois deles dormindo de tanto cachaçar às nove da manhã. Quando eu olhei praquela cena, eu soube que ia ter que escrever sobre aquilo; na minha cabeça já havia começado a trabalhar na história, ligando uma coisa à outra do jeito que sempre faço.

“Aí, chefe, vê se tá tudo em ordem aí no carro”, disse um sujeito de dois metros de altura com muita cara de segurança de escola de samba ou ex-chefe de uma boca de fumo. “Qualquer problema é só falar que nóis concerta”.

Eu olhei pra ele e disse que estava tudo certo, peguei o papel e fui pagar. Deixei quatro reais de caixinha, entrando no carro sob uma chuva de “valeus e obrigados”. Empurrei o banco pra frente e saí com o negócio. Sintonizei na rádio de música clássica e fiquei curtindo um piano muito bem tocado. Depois coloquei um som do Cypress Hill (das antigas) e chapei num rap muito bem mandado, batidas muito do caralho e aquela sensação, sabe? Aquela sensação perigosa quando você está com várias na cabeça — mas eu estava só com um chope, e me sentindo mais do que bem para um sábado de manhã. Daí percebi que tinha esquecido a garrafa de Coca que comprara no balcão da casa das esfihas. Nem sei porque fui carregando aquela bosta, ao invés de deixar no carro. Dei risada desta minha cabeçorra nipônica sequelada demais depois de vinte e sete anos meio que tocando o puteiro no inferno.

Na garagem do prédio encontrei com o síndico que tem cara de cachaceiro. Ele veio explicar que eu tinha que afundar mais ainda o dedo no botão do controle para abrir o portão automático, e que eu também estava apertando o botão errado (o de saída). Ele também veio falar das batidas no meu carro, e que o carro era novinho, e eu botei a culpa em Bela, falando: “Ah, esse carro é da minha namorada. Ela bate pra caralho isso aqui”.

Na verdade ela não pega no volante a mais de um ano e meio...

E agora estou escutando o “Are You Experienced?” do Jimi Hendrix enquanto termino de escrever isto aqui, tendo um cigarro mentolado (o quarto consecutivo) no canto da boca, ainda sentindo aquela sensação gostosa de apenas um chope reverberando pelo meu corpo (um chope, não uma cerveja, porque tomar uma cerveja só é pedir parar ter dor de cabeça e vontade de desistir de tudo; cerveja a gente tem que tomar de 3 latas pra cima).

Nada mal para um começo de sábado. Nada mal.

Gilberto Sakurai “O Maldito Escritor” — 31/03/2012

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Gilberto Sakurai
Enviado por Gilberto Sakurai em 12/08/2016
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