PICADINHOS EXISTENCIALISTAS

1---SIMONE DE BEAUVOIR nasceu em Paris, 1908, família burguesa, tradicionais escolas, mas logo na adolescência foi deixando os valores de sua classe para estudar filosofia (e não letras!) na Sorbonne, 1926, e logo conheceria JEAN-PAUL SARTRE, mantendo juntos uma longa e complexa união... cada um na sua casa. Ensinou filosofia e depois da II GM fundaram juntos a famosa revista mensal “Les Temps Moderns”. Auge do existencialismo, prestígio do casal era grande, líderes do movimento filosófico, ambos publicando ensaios e novelas. // Dela, estaque para “O segundo sexo”, ensaio histórico, sociológico e político, 1949, agitação para as gerações do pós-guerra, alicerce ideológico de feminismo a partir da frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Total conscientização, tentativa de acabar com a opressão.. porque a condição feminina é uma construção social, num mundo em que os homens dominam. “Só uma mulher intelectual ou empresária muito bem sucedida tem oportunidade para o “lado a lado”. Não se deixar dominar e tomar o poder do homem”, palavras de Simone. “Na mesma luta pela liberdade sexual, está à luta pela igualdade social e emancipação da mulher.” Neste livro, em posição radical, a afirmação de que o casamento e a maternidade são as portas onde a mulher entra na condição de sujeição. Implacável detratora do apenas trabalho doméstico, pois confina a mulher à casa, atrelada a uma atividade monótona, solitária e fora do mundo exterior. Radicalismo ou não, lutava a favor da legalização do aborto (ainda discutível no século XXI), criação de creches, difusão de anticoncepcionais e, principalmente, preocupada com a violência contra a mulher em todas as classes sociais. // Estória autêntica e comprovada. Como principal agente da fotografia (indiscreta em maioria), Art Shay, paparazzo da revista “Life” norte-americana, amigo de Nelson Algren, o “outro” marido de Simone. Pois bem, em 1952 ela publicara “O segundo sexo”, bíblia teórica do feminismo combatente, e estava no verão de Chicago, porém Algren morava num miserável quarto de pensão sem chuveiro ou banheira. O casal se banhava num lago próximo, onde um dia ela quase se afogou. Para “ajudar”, Shay (que chamava Simone de Frenchy) fez contato com uma amiga que possuía excelente banheiro com ducha e banheira; foi buscar a ‘francesinha’, uns 40 de idade, e, avisado pelo próprio Algren que ela não fechava a porta do banheiro, viu-a nua de costas, sandálias de salto alto, ajeitando o cabelo no espelhinho do armário da pia, fotografou-lhe o belo “dernière”. Ela percebeu e apenas disse algo como “Seu safadinho!” A foto foi vendida a colecionadores particulares, apenas divulgada a público em 2008, capa da revista francesa “Le Nouvel Observateur”. // De Simone, em “O segundo sexo”: “A mulher é tão necessária à alegria do homem e a seu triunfo, que se pode dizer que, se ela não existisse, os homens a teriam inventado.” // Durante muitos anos, Simone rejeitou reconhecer-se feminista no sentido restrito; somente em 1970 admitiu integrar-se à militância organizada e participou de assembleias e passeatas, como ativista do Movimento da Libertação da Mulher, na França Reuniu entrevistas que entre1972 / 1982 concedeu à jornalista Alice Schwarzer, uma das líderes do movimento feminista na Alemanha: virou o livro “Simone de Beauvoir hoje”. // O discurso feminista aparece em sua criação como romancista, ensaísta e memorialista e na biografia. Fez uma novela autobiográfica, de concepção existencialista, “Les Mandarins”, 1954, cujas personagens centrais são a psicóloga Anne e marido Robert, que seriam Simone e Sartre (entre ‘traído condescendente’ e intenso pulador de cerca, tentação de alunas), num triângulo amoroso com o americano Lewis Brogan, em verdade o novelista de estórias policiais Nelson Algren, caso amoroso, ele querendo casar, mas ela permaneceu “fiel” a Sartre até o fim da vida. Mandarins eram os intelectuais exortados, sugestão para fazerem menos elitismo, chamando-os para a luta política no mundo real, os dois franceses presentes em todos os movimentos de esquerda. // Em 1960, estiveram em Cuba, solidários com a revolução castrista e, na volta, Brasil !!!- recebidos por personalidades de elite como Jorge Amado, Zélia Gattai, Fernando Sabino, Oscar Niemeyer, Júlio de Mesquita Filho, Flávio Rangel, Márcio Moreira Alves e Luiz Carlos Prestes. O escritor e jornalista Antônio Callado, redator-chefe de “O Correio da Manhã”, reuniu o grupo num jantar e todos ouviam Sartre como um oráculo - um homem feio, mas com grande força e brilhantismo intelectual, de eloquência fascinante. Simone, bela mulher, elegante, presença especial, figura marcada por um turbante. Visitaram favelas, terreiros de candomblé e Brasília, que Simone chamou de “maquete em tamanho natural”. Nas numerosas entrevistas, Sartre defendeu uma literatura engajada, mobilizando leitores para ações revolucionárias. // Com toda inteligência e intelectualidade, não soube amá-la satisfatoriamente no sexo e Simone encontrou o completo amor físico com um amante americano, mas retornou para Sartre, e cuidou dele quando adoeceu seriamente... // Boa parte da obra de Simone é memorialista, quatro volumes, que inclui um ensaio sobre a velhice e um pungente relato sobre os últimos anos de Sartre, doente, dependente de álcool e drogas. Túmulos lado a lado. // “La femme rompue” (A mulher desiludida), 1968, três estórias, três protagonistas, mulheres maduras em crise existencial, situações de perda, sensação de fracasso. Uma enfrenta a velhice sem grandes queixas, o filho cumprindo as expectativas impostas, até ele abandonar os projetos que orgulhavam a mãe e esta passa a um cotidiano aflitivo e desértico. Traída pelo filho. Outro, monólogo desesperado entre culpa e inocência: perdera a filha por suicídio sem explicação, mãe agora sem laços e lugar no mundo, caminhando talvez para a loucura. Traída pela filha. Outra faz um diário: descobre, amargurada e revoltada, que o marido está tendo um caso e não quer largar nenhuma das duas mulheres - o tal casamento aberto existencialista?! Constata a crueldade e complicação de repartir um amor. Traída pelo marido. Bom, traídas pelo tempo e pela vida, pelo descontrole das emoções ou controle apenas parcial, pelos planos imperfeitos e não realizados pelo não domínio sobre coisa alguma, longe da felicidade, ambição idiota. Afetividade causa dependência e é ruim a nossa realização através do outro. // De “A mulher desiludida”, texto inédito no Brasil até 2015, o que teria sido parte da coletânea, mas foi substituído e permaneceu inédito na própria França até 1992: “Mal- entendido em Moscou”. // Nos livros de Simone, não personagens positivas e militantes heroicas, não utopias e irrealidades, mas infelizes e esmagadas pela vida porque é a condição feminina.

(Segue.)