Terminando 'Contra o dia'

Os três livros mais difíceis que eu li até hoje, e ao mesmo tempo mais fascinantes, que mais mexeram comigo, foram 'Grande Sertão: Veredas', de Guimarães Rosa, 'A paixão segundo G.H.', de Clarice Lispector, e 'Graça infinita', de David Foster Wallace. A dificuldade deles está, sobretudo, na sua linguagem fora do comum: uma coisa viva, solta, confusa, mas que, ao ser vencida pelo leitor (o que nem sempre acontece), abre-lhe um mundo incrível, mágico, no qual a experiência da leitura se transforma numa aventura de autoconhecimento.

Ultimamente só tenho lido livros assim. Escolho-os com muito cuidado, porque, normalmente, são enormes, alguns com mais de mil páginas, ou são tão difíceis que uma página deles exige mais de mim do que vinte ou trinta de uma obra mais amena.

Hoje, aos 41 anos, considero-me um leitor maduro o suficiente para me aventurar em obras desse quilate, poderosas, profundas, difíceis. Só recentemente consegui ler 'Grande Sertão: Veredas', depois de umas cinco ou seis tentativas, dos vinte aos trinta anos. Dificilmente eu conseguiria penetrar a densidade sombria de 'A paixão segundo G.H.' aos vinte anos. E não passaria das cinco primeiras páginas de 'Graça infinita' se tentasse lê-lo aos trinta. Tudo tem sua hora, e como leitor, acho que a minha já chegou. Sinto que agora posso abraçar com prazer a grande literatura... qualquer livro... Finalmente.

No momento estou terminando 'Contra o dia', de Thomas Pynchon, obra gigantesca, genial, uma aventura fantástica pela história do mundo na virada do século XIX para o XX, com personagens densos, maravilhosamente bem construídos, interessantes, inquietantes. O livro todo é inquietante, sua trama, sua linguagem, suas reflexões sobre o homem na era do capital, da ganância, da ciência... Pynchon tem fama de ser confuso, mas acho que por eu já ter experimentado outros grandes autores, tão ou mais complicados quanto ele, achei-o até bem acessível, embora profundo, impactante, tão perturbador quanto Roberto Bolaño e David Foster Wallace.

'Contra o dia' tem 1087 páginas. Estou na 1053, mas não quero que o livro acabe. Por isso saboreio cada frase, cada parágrafo, copio os trechos mais bonitos, mais interessantes, degustando-os de novo, lentamente... Mas vou terminá-lo hoje à noite, e logo partir para outro. Já até decidi qual vai ser: um livro pouco conhecido no Brasil, mas bastante cultuado na Europa e nos Estados Unidos: 'Wittgenstein’s Mistress', de David Markson, que a minha prima Caroline trouxe para mim de Nova York (o posfácio foi escrito por ninguém menos que David Foster Wallace, o que me animou ainda mais a encarar essa nova aventura). Vamos ver o que vai dar...

Daqui a pouco, bebendo uma taça de vinho, vou ler as 34 últimas páginas de 'Contra o dia'... Estou aqui com ele aberto na 1087. Suas últimas frases são: “Em breve verão o manômetro indicar uma queda. Sentirão a virada do vento. Colocarão óculos protetores com vidros escuros para a glória do que virá rasgar os céus. Eles voam em direção à graça.”

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 18/08/2016
Reeditado em 18/08/2016
Código do texto: T5732617
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