O que importa...

Ouço John Coltrane no computador... 'A Love Supreme', álbum de jazz gravado em 1964... No Brasil, em 64, um golpe político-militar se arquitetava, ou já tinha acontecido, com o apoio de empresários, fazendeiros e banqueiros, que temiam o comunismo... Meu pai tinha 14 ou 15 anos e gostava de futebol. Desde os 12 já trabalhava. Se fossem os militares que estivessem tentando tomar o poder, ou se já tivessem tomado, para ele não importava. Para muita gente não importava.

Na maternidade da minha cidade, muitos bebês nasceram em 1964. Alguns, ou talvez até muitos deles, já morreram. Muita gente que nasceu em 64 já morreu. Eu nasci em 75, ano em que Steven Spielberg lançou seu 'Tubarão' nos cinemas e Raduan Nassar escreveu 'Lavoura arcaica'. Muita gente de 75 também já morreu. Ontem estive no cemitério e contei: só no Bloco B-2, dez pessoas nascidas em 75 já estão debaixo da terra, transformadas em ‘restos mortais’. Enfim... partimos todos, mais cedo ou mais tarde. Quem sofre mesmo é quem fica: pais, filhos, amigos...

Na adolescência eu não tinha amigos. Hoje tenho alguns... poucos, é verdade, mas tenho. Minha esposa é minha amiga. É bom ter um amigo que a gente ama em casa...

Adoro ficar em casa... ler, escrever, ouvir música... Acho que vou morrer em casa, sozinho, sem dor... Dor não presta, sofrer não rola... Se for hoje ou amanhã, daqui a trinta ou quarenta anos, não importa. O importante é ter vivido, amado, ter sido bom e honesto consigo mesmo e com os outros. O tempo não importa...

Por falar em tempo, hoje faz frio. Estou triste, pensando na morte de pessoas jovens, para quem morrer não importa mais... Ouço Aretha Franklin... 'The Queen of Soul'… Em que ano ela morreu? Vamos ver... (adoro datas)... Ela não morreu. Nasceu em 1942 e ainda é viva (acabo de ler na Wikipédia).

1942... Hitler no poder, dominando a Europa, exterminando judeus... Anne Frank, Marc Bloch, Olga... Hitler já morreu, com certeza. Se foi em 45, quando viu que a guerra estava perdida e se matou, ou depois, eu não sei... mas Hitler já era.

Trinta anos depois do fim da guerra eu nasci, e junto comigo, muita gente que já morreu. Outros que nasceram no mesmo ano que eu continuam por aí, mandando, obedecendo, fingindo, amando, fazendo o bem, o mal... vivendo... ou achando que vivem...

Em 75 Jim Morrison já tinha morrido. Partiu em 71, deitado numa banheira, sozinho, em Paris, aos 27 anos. Deixou para o mundo sua poesia, sua música, que era o que ele tinha de mais verdadeiro. O tempo que ele deixou de viver? Não importa. Foi e pronto. Partiu... Para onde? Para fora do tempo e do espaço... Não foi para lugar nenhum. ‘Onde’ não é a palavra certa... Ou é? Não sei... Só sei que isso não importa.

Em 2002 visitei o túmulo de Jim Morrison em Paris. Eu tinha a idade que ele tinha quando morreu. Era meu aniversário... Passei meu aniversário de 27 anos sozinho, caminhando pelo Cemitério do Père Lachaise... Lugar encantador... Fazia frio, muito mais que hoje...

Hoje estou triste, pensativo, cheio de reticências... Notícias tristes me deixam assim, melancólico, escrevendo coisas sem nexo... ou melhor, com nexos frágeis, frouxos, como os pensamentos de quem já subiu a serra e agora olha para o outro lado com a certeza de que o fim se aproxima. Se vai ser hoje ou amanhã, daqui a dois, três, trinta ou quarenta anos, não importa (acho que eu já disse isso)... O fato é que o fim se aproxima. É tudo tão rápido...

E eu rezo para agradecer... mas sozinho, em silêncio, quando eu quero. Oração, para mim, não é teatro nem obrigação. Se há verdade, espontaneidade, eu até rezo em grupo, vou à missa... Mas ninguém me obriga a rezar.

Hoje eu vou rezar... Vou rezar pelo espírito de alguém que acaba de partir... Ele viveu, fez sua parte, foi bom e partiu... Partiu? ‘Partir’ é a palavra certa? Não sei... Um dia vou saber... ou não... Isso não importa.

O que importa...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 25/08/2016
Código do texto: T5739919
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