O rosto do desconhecido

Nenhuma tarde fora semelhante àquela.
A sensação de abandono me revolucionava por dentro. Eu fechava os olhos e tentava ficar presa aos bons pensamentos e aos últimos momentos que passara com a minha irmã Dulce na cidade grande. Sabia que estava sendo levada para um mundo desconhecido e, procurava não dar conta daquilo que passava por mim.
Ouvia apenas o arfar da respiração daquela senhora estranha e com ar imperativo, sentada ao meu lado no banco daquele velho e fumegante ônibus. De vez em quando ela olhava pra mim com indescritível ar de desprezo.
Ao chegarmos, no ponto final, percebi que já era fim de tarde e a Madrinha, era assim que ela queria que a chamasse, disse que ainda íamos andar um pouco até chegarmos à sua casa.
Eu, que era desprovida de tudo, levava meus poucos pertences apertados contra o peito, como querendo guardar os últimos resquícios que me ligava ao meu passado recente. Naquele momento lembrei da minha mãe e de como foi difícil para ela perder o marido aos 45 anos e ter que, sozinha, cuidar de 17 filhos. Em cada canto, meus irmãos e irmãs foram sendo espalhados, ao léu da sorte que o destino lhes reservaria.
Enfim chegamos. A casa da Madrinha, à frente, tinha uma calçada bastante alta. Não entramos pela porta principal. Seu marido, ao lado, tocava uma pequena bodega.
E logo fomos apresentados. Um homem bem alto e muito branco, sentado num banquinho de pernas frágeis, que parecia que em algum momento não suportaria a forma desleixada como ele se largava sobre ele.
Madrinha me chamou e disse: - Esse é José, meu marido e seu pai daqui pra frente, mas pode chama-lo de Padrinho.
Aquela palavra, pai, soou como uma punhalada no meu peito. Naquele momento fixei os olhos nele, tomada por uma forte repugnância. Eu só tinha doze anos e já tinha que viver todas essas coisas! E os meus sonhos de menina? E a história de Cinderela que a minha irmã Dulce havia contado pra mim e que eu insistia que a repetisse todas as noites antes de dormir? Naquele momento, percebi que não teria a menor chance de viver nada daquilo.
Com tristeza, abaixei a cabeça ... escondi o rosto entre as mãos e me veio uma forte e intensa vontade de chorar.
Insensível à minha dor, Madrinha me conduziu até a cozinha e apresentou sua filha Carla. E, como se estivesse lendo uma grande lista de afazeres, ela vomitava, num linguajar tosco e frio, um sem número de tarefas, mostrando como seria a minha vida dali pra frente ... eu não teria tempo pra viver.
Com tantas atividades, não havia chances para uma vida pessoal, até que consegui alguns momentos de liberdade quando passei a frequentar uma escola e, muito a contragosto da Madrinha, consegui ter alguns sinais de amizade com outras colegas. Aliás, era uma ordem que eu recebia todos os dias. Madrinha dizia que não queria que eu fizesse amigos e muito menos queria me ver conversando com alguém. As memórias dos meus irmãos e irmãs foram se esvaindo, se apagando ... eu não lembrava mais dos seus rostos.
Eu dormia chorando todas as noites e não tinha tempo e forças pra pensar na minha família.
Madrinha, se especializou nos requintes da maldade.
Eu era a responsável por todas as tarefas da casa, das mais leves às mais pesadas. E, quando não fazia do jeito que ela queria, lá vinha uma série de puxões de orelha, seguidos de tapas na boca e cabeça. O seu bom humor era quem definia como ela iria proceder e qual tipo de castigo eu iria receber.
Madrinha tinha um salão de beleza e trabalhava o dia todo. Ela era quem sustentava a casa.
O padrinho era um ser muito estranho. Viciado em jogo de bicho, fumava muito, e por conta do vício perdeu logo a bodega. Passava a maior parte do dia em casa.
No período da tarde, depois de deixar tudo pronto, eu ia ajudar no salão e ele ficava em casa. Embora ela não confiasse nele, ou talvez em mim, eu não sei , o fato era que quando chegávamos, à noite, o leite sempre estava talhado. O certo é que ele bebia uma grande porção e colocava água para que ela não percebesse que tinha sido mexido. É claro que sobrava pra mim. E ele, por conta disso, para afastar qualquer suspeita sobre si, fez uma palmatória e disse que era o meu presente. Invariavelmente, eu recebia uma insuportável quantidade de bolos nas mãos por algo que não tinha feito.
Ela vivia dizendo: - No dia que você provar da força do meu braço !!!
Muitas noites ia dormir com fome, mergulhada num soluço íntimo e absolutamente solitário. Nas vezes em que no desespero e em prantos me dirigia a Deus, não conseguia pedir nada.
E, na intensidade da minha amargura, num choro secreto, íntimo e absolutamente resignado, perguntava pra Ele: - Senhor ... até quando ?