A intolerância de Ramon

Ramon caminhava pelo centro de uma cidade feia, fedorenta, enfiado num terno apertado, olhando para um lado e pro outro, perdido, cansado. E o que ele via e ouvia era tudo que mais odiava: carros presos num trânsito infernal, buzinando e soltando fumaça para todos os lados; um boteco a cada cinco metros, com suas mesas e cadeiras de plástico branco encardido tomando conta da calçada, onde jovens se sentavam de pernas abertas, coçando seus sacos suados e rugindo uns para os outros enquanto comiam churrasquinho e bebiam cerveja; sertanejo universitário tocando em todos os bares – ou seja, na rua toda, em todos os lugares –, um ritmo só, a mesma voz esganiçada penetrando o cérebro de Ramon, lavando seus neurônios com ácido, enlouquecendo-os, desintegrando-os; e em cada bar um telão exibindo a mesma partida de futebol, a voz do narrador se misturando com os gritos do cantor, os rugidos da juventude e os toques de celular – a maioria hinos dos dois times em disputa; e onde não havia bares e botecos, Ramon só via lojas de peças para carros, motos e caminhões, lojas de pneus, sons automotivos e materiais de construção; e gente jogando lixo no chão: latinhas de cerveja, tocos de cigarro, papel engordurado, pedaços de pastel; gente gritando, rindo, rugindo, falando palavrão, tirando selfies...

Ramon caminhava desesperado, procurando uma livraria, uma cafeteria, uma padaria que fosse, onde pudesse tomar um café, mas não via nada disso. O cenário e os atores eram os mesmos, o fundo musical era o mesmo, onde quer que ele fosse – na verdade não era fundo, nem musical, era uma coisa inteira, avassaladora, preenchendo tudo: o fundo, o meio, a frente, o palco todo, as paredes, o chão, o céu, TUDO; e o cheiro de gordura usada várias vezes, de peidos e arrotos de alho e linguiça; e gritos e risadas...

Ramon tampava os ouvidos, fechava os olhos, mas não adiantava, aquilo estava dentro dele. De repente começou a correr, procurando uma saída, uma porta, mas nada se abria para ele; o calor era insuportável, o cheiro de urina e suor invadia-lhe o cérebro implacavelmente e lá se acumulava; e aquela música, os telões, o jogo, os gritos...

Foi quando Ramon viu uma livraria, ao lado de um bar onde um grupo de rapazes gritava “gol, gol, gol!”. Entrou correndo e fechou a porta atrás de si. Uma livraria... Ramon não acreditava no que via: estantes repletas de livros. E silêncio. Cheiro de café. “Não pode ser verdade”, pensou Ramon, e foi em direção a uma estante, onde viu alguns livros de Thomas Pynchon. Tentou pegar um exemplar de 'O arco-íris da gravidade', mas não conseguiu tirá-lo do lugar. Era um livro falso, de plástico, preso na parede. Todos eram assim. Era tudo falso ali!

De repente as estantes se abriram e Ramon se viu dentro de um enorme bar, com um telão exibindo o mesmo jogo de futebol, o sertanejo bombando, e todo mundo bêbado, gritando, comendo, conversando sobre futebol, carros, mulheres.

Foi quando Thomas Pynchon apareceu e se colocou na sua frente, rindo, claramente gozando da sua cara. “Pynchon? É você?”, perguntou Ramon. “Sim”, disse ele em inglês, “e você é Ramon, o intolerante, o nerd recluso, esquisitão”. “Quem é você para me chamar de nerd recluso, Pynchon?”, foi a resposta de Ramon, e os dois riram; e logo Pynchon desapareceu e Ramon acordou, todo suado, tenso, desesperado. Estava em sua cama, ao lado da esposa, que dormia como um anjo. Foi ao banheiro, olhou-se no espelho e disse: “Preciso ser mais tolerante”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 07/09/2016
Código do texto: T5753812
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