Eu realmente não queria fazer isso. A todos os argumentos eu tinha uma resposta pronta. “É um gato preto e vira-latas, tu nunca vais querer tirar cria.” Isso me soava ao mesmo tempo pungente e irritante – racista e elitista. “Ele vai ficar mais mansinho.” Pois eu preferia continuar tendo as mãos esfarrapadas por suas unhas a vê-lo mansinho e abobado. “É a coisa mais sensata a se fazer com um gato de apartamento.” Pois então eu me mudaria para uma casa. Até que, finalmente, minha mãe me saiu com esta: “Qualquer dia, ele foge, vai atrás de uma gata, faz barulho e matam ele.” Bom, pensei, capado mas vivo. E me decidi a levá-lo para o terrível sacrifício. Até porque li, num livro sobre gatos, que, se colocarmos um gato castrado com uma gata no cio, provavelmente haverá a cópula. Isso tranqüilizou um pouco a minha consciência.
Mesmo após marcada a data da cirurgia, muitas vezes pensei em voltar atrás. Cheguei a ter um pesadelo em que o cachorro castrado, tão cantado em verso e prosa por brilhantes poetas gaúchos, convertia-se na figura de Abelardo e me implorava que tivesse piedade. Acordei-me suando e o abracei com carinho. Ele me arranhou.
Naquela manhã cinzenta e chuvosa, lá fui eu, minha alma cinzenta e chuvosa arrastando o meu corpo e, de quebra, o dele. O veterinário me parecia simpático. Larguei-o lá e não quis ficar para assistir. Nem podia: que eu saiba, veterinários não dão atestado para acompanhar procedimentos médicos em “pessoa da família”.
Torturei-me o tempo todo. Tive medo de que alguma coisa desse errado. Afinal de contas, era uma cirurgia – e a lembrança de ter ouvido dizer que até arrancar um dente pode matar, se o serviço for mal feito, levava-me a estremecimentos de preocupação e de remorso como poucas outras coisas na vida algo conseguiu me causar.
À meia-tarde, voltei naquele lugar, que, em minha mente, assemelhava-se a um antro de sadomasoquismo. Quando abriu a porta, o médico-veterinário tinha o braço direito coberto por um enorme curativo. Olhei-o, curiosa. Ele me devolveu o olhar, severo. “Foi o teu, sim”, disse-me, apenas.
Interiormente, senti um enorme orgulho – um orgulho de mãe. Meu gato tinha lutado bravamente por sua macheza. Podia imaginá-lo lançando-se na jugular do infeliz que, num ato não mais que reflexo, tinha conseguido interpor o braço entre o pescoço e as garras de sua quase vítima – ato esse que só teria sido rápido o suficiente por meu gato já se encontrar sob o efeito de algum anestésico...
Pois o homem me levou à minha pequena pantera, que estava num canto, completamente inerte. Vê-lo naquele estado abalou meu coração. O homem levantou-lhe uma das patas para me mostrar a cirurgia, e, ao deixá-la cair, percebi que o paciente não tinha qualquer sinal de tônus muscular. “Esse desgraçado matou o meu gato”, pensei. Como se me adivinhasse os pensamentos, ele disse: “Daqui a pouco ele acorda, viu?” Mas só me convenci ao me ajoelhar diante da pequena criaturinha e me certificar de que respirava.
Levei meu gato para casa. O veterinário tinha avisado que ele ficaria estranho por alguns dias, mas esqueceu de me avisar que uma dessas “estranhices” seria o fato de seus olhos apontarem para ângulos opostos. Não para o mesmo ângulo, mas para ângulos diametralmente opostos, como um vesgo ao contrário. E só me dei conta disso em casa, quando ele finalmente abriu os olhos. O pobrezinho não se segurava, fazia xixi a torto e a direito – ele que sempre respeitara ao máximo a regra da caixa de areia. Não se firmava sobre as patas, não andava em linha reta. Parecia bêbado. E eu, louca de pena.
Quanto fui me deitar, senti uma coisinha quente e macia embaixo dos cobertores. Levantei-os, e lá estava o meu gato – todo mijado – escondido entre meus lençóis. Tive ímpetos de corrê-lo dali com raiva, mas pensei: “bem, emporcalhado, emporcalhado e meio”. Enrolei-o no lençol, empurrei-o para um lado e tomei posse do que me restava da cama, dormindo sobre o colchão nu, e fosse o que Deus quisesse.
Bem, meu gato sobreviveu. E continua bravo. Felizmente, não perdeu nada de sua alegria, de sua agitação, de sua personalidade esfuziante. Engordou um pouco, mas não muito. Mantém-se ativo e altivo.
E isso me leva a outro questionamento: será que sexo realmente faz falta? Às vezes, olho-o, parecendo-me vê-lo tão feliz quanto antes, eu lhe pergunto: “E aí, gato, tu achas que sexo faz falta na vida de alguém?”
Ele me olha de volta com ar de pouco caso e se espicha preguiçosamente ao sol, como que a dizer que sexo definitivamente não faz falta quando se sabe aproveitar os outros prazeres desta vida. Ao menos para quem tiver um pouco da sabedoria dos gatos...

18/07/2007
Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 23/07/2007
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