Velho Chico e Força do que Tem que Ser

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A Vontade do que Pode Ser
 
 
As novelas andavam muito fracas, coalhadas de personagens inconsistentes movendo-se em tramas aguadas. Não dava vontade de assistir, pois elas não passavam verdades. Ou mostravam famílias e relacionamentos em ruínas, traições, maldades, violência e futilidades, ou então mostravam personagens que, de tão perfeitos e bondosos, tornavam-se fracos e irreais – porque ninguém é tão perfeito e bondoso assim.

Mas novela pode ser arte.

Velho Chico, de Benedito Ruy Barbosa,  veio para salvar a teledramaturgia brasileira. Desde o início eu percebi que esta história seria diferente. As imagens, que tiveram suas cores ressaltadas sob por um filtro amarelecido, deram um ar de antiguidade e realidade, ressaltando as rugas e sinais na pele dos atores. O cuidado com os figurinos e cenários também contribuiu para a realidade das cenas – casas antigas e vivas, que realmente participaram da composição da história, como a do Coronel Saruê, mostrando um luxo decadente e carcomido como a maneira de ser do personagem. Seus cômodos lacrados me fizeram lembrar os cômodos que temos dentro de nós mesmos, e que nos recusamos a acessar. 





A escolha do elenco não poderia ter sido melhor. No começo, não gostei da composição do personagem do coronel, mas com o tempo eu compreendi que ele era exatamente como tinha que ser: um homem de peruca, que se disfarça para poder levar a vida adiante, criando para si um personagem duro a fim de manter a sua fama de coronel. Quase erraram na mão quando o personagem de Camila Pitanga surgiu com seus vestidos esvoaçantes de alta costura em meio a caatinga, mas aos poucos, o figurino foi sendo adaptado.




A fotografia foi um show à parte; as imagens do Velho Chico são, ao mesmo tempo, lindas e emocionantes. Às vezes, ao ver o rio passando, eu sentia um aperto na garganta. Nas margens daquele rio entrelaçaram-se as vidas de seus personagens fictícios, assim como acontecem as vidas das pessoas reais, que tentam gritar e chamar a atenção ao que está acontecendo ao rio. 




A trilha sonora parece ter sido escolhida conforme a personalidade de cada personagem. Nunca vi uma trilha mais perfeita do que a do coronel Saruê, "Senhor Cidadão", de Tom zé: 
 
Senhor cidadão
senhor cidadão
Me diga, por quê
me diga por quê
você anda tão triste?
tão triste
Não pode ter nenhum amigo
senhor cidadão
na briga eterna do teu mundo
senhor cidadão
tem que ferir ou ser ferido
senhor cidadão
O cidadão, que vida amarga
que vida amarga.

Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
com quantos quilos de medo,
com quantos quilos de medo
se faz uma tradição?

Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
com quantas mortes no peito,
com quantas mortes no peito
se faz a seriedade?

Senhor cidadão
senhor cidadão
eu e você
eu e você
temos coisas até parecidas
parecidas:
por exemplo, nossos dentes
senhor cidadão
da mesma cor, do mesmo barro
senhor cidadão
enquanto os meus guardam sorrisos
senhor cidadão
os teus não sabem senão morder
que vida amarga

Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
com quantos quilos de medo,
com quantos quilos de medo
se faz uma tradição?
Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
se a tesoura do cabelo
se a tesoura do cabelo
também corta a crueldade

Senhor cidadão
senhor cidadão
Me diga por que
me diga por que
Me diga por que
me diga porque




 


A trama, em si, é um poema real, onde ninguém é perfeito, e cada personagem traz dentro de si o bem e o mal, o amor e o ódio, convivendo com seus acertos e erros, que tentam consertar ou esconder. 

Gostaria de destacar a personagem de Selma Egrei, a Dona Encarnação, que passou a vida lutando e matando para que o nome de sua família pudesse prevalecer, e que aos cem anos de idade, ainda pode reparar alguns de seus erros e deixar a vida com alguma dignidade, assumindo os pecados que teria que pagar. 




Também gostei muito do Chico Criatura, magnificamente interpretado por Gesio Amadeu, que serviu como uma ligação entre amigos e inimigos, dono do ‘point’ onde aconteciam os encontros da novela. Outra figura que me marcou e surpreendeu, foi a de Martin (papel do ator Lee Taylor), que a fim de matar a sua sede por justiça, decide tomar uma decisão muito difícil: abrir mão de sua família, mas sem jamais cortar os laços totalmente. Sua interpretação foi apaixonada, e apaixonante.



Carlos Eduardo, de Marcelo Serrado: monstros já nascem prontos?

Gostei muito do Miguel, de Gabriel Leone, e de sua história de amor inusitada com Olívia (Giullia Buscasso). Porém, sem dúvida, a grande surpresa desta novela foi Luci Alves, que além de excelente cantora e instrumentista, provou ter o sangue dos grandes atores correndo nas veias. 



Impossível esquecermos do Clemente, um vilão totalmente ‘dark’ e ao mesmo tempo, engraçado,  que nasceu da interpretação do grande ator Julio Machado. 




Dona Piedade, interpretada com excelência tanto na primeira fase (Cyria Coentro) quanto na segunda (Zezita Matos) foi um exemplo de superação e uma lição de força e perdão. Nem tenho o que dizer para elogiar Chico Diaz, um dos maiores atores brasileiros, em sua interpretação de Belmiro dos Anjos na primeira fase da novela.




A Yolanda, de Christiane Torloni, também deu um show ao mostrar uma mulher que, por amor, desistiu de sua própria vida, enterrando-se em um ambiente onde era frequentemente hostilizada, até mesmo por aqueles a quem amou. Felizmente, ela soube despertar e retomar sua vida no final da trama.





Bento (personagem de Irandhir Santos) provou que muitas vezes, ao olharmos para alguém que consideramos nosso inimigo, não enxergamos uma pessoa real, e sim uma imagem na qual nos acostumamos crer. Ao estender a mão ao filho de um dos grandes inimigos de sua família, uma amizade forte e verdadeira brotou, e ambos uniram-se em luta daquilo no qual acreditavam. Ficou nos arredores desta amizade um possível triângulo amoroso entre Bento, Martin e a professora Beatriz (Dira Paes). 




O Cícero de Marcos Palmeira é um grande exemplo do que nos acontece quando permitimos que outras pessoas façam escolhas por nós, ou quando simplesmente seguimos a corrente da vida sem pensar se é por ali, realmente, que desejamos seguir.

Todos os atores, sem exceções, deram um banho de interpretação. Uma novela que vai ficar na lembrança, como as antigas novelas da Globo. 




Porém, a ficção acabou transformando-se em um drama real, com as mortes dos atores Umberto Magnani, que deu vida ao Padre Romão, e também a do ator principal da trama, que interpretou Santo dos Anjos, o ator Domingos Montagner. Este último já tinha feito outro trabalho junto àquele mesmo rio que o levou: A novela Cordel Encantado.  Destino ou coincidência, Domingos Montagner era do signo de Peixes. Um de seus Orixás protetores era Iemanjá.




Esta trama me encantou, e cada personagem mostrou uma lição de vida. A vida é o que tem que ser, como deve ser, com suas alegrias e tristezas, amores possíveis e impossíveis. E até o amor mais impossível, pode tornar-se possível quando se luta por ele.  E nenhuma espécie de sacrifício feito em nome de outros terá valido a pena, se isto significar abdicar da própria vida e da própria verdade a fim de viver de acordo com o que outros determinem. 

A vida não imita  a arte: ela é a própria arte.

Termina a novela, ficam as lições. 


 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 26/09/2016
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