A PIPA, OU PAPAVENTO

Eu devia ter no máximo nove anos. Minha vida era maravilhosa. Cursava o primário na Escola Dom Pereira de Barros.Tinha preguiça danada para levantar, mas minha mãe punha todos os filhos em pé, encontrava um pouco dificuldade em acordar o Claudionor, mas de uma maneira ou outra todos acordavam.

Ia para assistir a aula, só não posso negar que as vezes eu fingia que entrava para assisti-la, porém pulava o muro do fundo da escola e saia para brincar na rua.

Futebol. Taco. Uma na Mula, e o principal, empinar Pipas. A história que vou contar, ainda hoje me vem a memória com uma realidade incrível. Vamos ao que interessa.

Era o período de vento, o Céu ficava cheio de lindas pipas que cortavam o ar como pássaros afoitos por um inseto.

Eu tinha um amigo, de família muito rica, dona da Fábrica de Louça de Taubaté, matei a aula, e fui bater na porta do amigo Sergio. Esta casa eu vi construir, e lamentavelmente, na semana passada eu a vi sendo demolida ali na Santa Terezinha.

--- Serginho, vamos empinar pipa. - gritei do lado de fora dos portões. Ele tinha alguns cães que faziam vigia da casa, e eu não queria me arriscar a ser mordido.

O menino rico saiu sorridente, já trazendo duas pipas e duas máquinas feitas em madeira que usávamos para soltar e recolher a linha.

--- não era para você estar na aula Claiton. - perguntou ele, olhando a minha mochila que trazia na mão.

--- era... mas eu quero empinar o meu Papavento, até ele desaparecer no Céu, tive uma ideia, e quero ver o resultado.

O menino rico abriu o portão. Tocou os cães. Deu-me uma linda pipa, e a máquina de empinar.

--- que ideia maluca é essa.

--- quem disse que é maluca. - indaguei.

--- vindo de sua cabeça, só pode ser maluca. Tem hora que acho que você vive no mundo da Lua. - disse ele, já saindo correndo e dando linha para a pipa voar.

Eu fui caminhando. Naquela época em frente a Igreja da Santa Terezinha havia a cadeia Pública. A frente ficava para antiga rua América, as laterais e a parte de trás era usada por nós meninos para jogar bola e empinar pipa. Circundando a cadeia havia uma calçada imensa onde podíamos ficar sentados e ver nossos pássaros de papel voarem a gosto do vento.

Havia também um galpão de madeira, onde um senhor de nacionalidade japonesa vendia hortaliças e frutas. O restante eram árvores de vários tamanhos. Lugar dos meus sonhos.

Sentei-me e retirei o meu material escolar. Peguei o caderno e tirei a última folha com cuidado, para que a primeira não se soltasse.

Comecei a escrever um bilhete. Minha letra não era das melhores, acho que isso perdura até hoje.

ESCREVI.

Hoje, matei aula para empinar pipa. Acho que não gosto de estudar, a professora é muito chata e sempre esta puxando a minha orelha, ou batendo com a régua na minha cabeça.

Ela diz que eu não presto atenção na aula. Porque eu tenho que estudar? Se a maioria dos meus amigos vivem brincando na rua?

Se alguém achar este bilhete e souber a resposta, me procure, eu moro na Santa Terezinha, o meu nome é CLAITON, mas todos me chamam de Gordinho.

Logicamente que na época havia muitos erros na escrita, mas não seria oportuno colocá-los neste momento no desenrolar desta história.

Peguei o bilhete, dobrei e amarrei fortemente na rabiola da minha pipa.

Serginho já estava com o papavento dele longe, quase no meio das nuvens claras daquele lindo dia.

Minha máquina de empinar devia ter no mínimo uns 10 carreteis de linha Corrente, a mais forte vendida no Armazém do seu Elias, que ficava na esquina da rua América.

O vento estava forte e logo o meu pássaro de papel tomava conta dos ares, das nuvens do Céu Azul de uma linda manhã.

Eu gostava de empinar pipa, não gostava de fazer caçadas, então procurava colocar o meu objeto voador longe dos outros, queria apenas ver e sentir a liberdade de voar. Seria como se eu me tornasse um super herói e pudesse ganhar dos pássaros, dos aviões, dos objetos não identificados, muito em voga naquela época Ovnis.

Serginho se aproximou.

--- gordinho... o vento esta muito bom, dá até gosto ficar empinando. Ele sentou-se ao meu lado, na imensa calçada que circundava a cadeia pública.

Mexi em meu bolso e retirei o meu canivete. O menino rico ficou me olhando assustado.

--- o que você vai fazer?

Meu papavento era o mais alto e longe de todos.

--- Isso. - em um movimento rápido cortei a linha, como se cortasse um vínculo de amor é ódio.

Amor pelo prazer de soltar pipas. Ódio pelos puxões de orelhas, pelas reguadas na cabeça. Pela minha preguiça em estudar, e por um montão de outras coisas que pareciam desaparecer com a minha pipa sumindo agora sem controle, indo por outros caminhos não aquele que eu antes podia dar.

Aonde ela cairia. Quem a pegaria. O meu bilhete. Será que alguém, tomaria conhecimento das minhas lamentações.

A manhã se foi rápida. Eu precisava voltar para casa. Comi o lanche da minha mochila. Um pão com mortadela, minha comida preferida desde a infância.

Cheguei em casa. Como um excelente aluno que eu não era.

--- benção mãe. - pedi, já sentando-me a mesa para o almoço.

--- como foi a aula. O que aprendeu hoje. - perguntou minha mãe, olhando-me de soslaio.

Eu não queria mentir para a minha mãe, mas se dissesse a verdade, a varinha de marmelo iria cantar.

--- tudo bem mãe. Apreendi um montão de coisas.

--- bom, gostaria que um dos meus filhos fosse doutor, mas sei que vai ser difícil. - comentou ela, mexendo o guisado de feijão.

Hoje eu sei como foi difícil.

Passou-se uma semana.

Eu tinha acabado de sair do catecismo e fui me sentar na calçada da cadeia, nem bem sentei e o Serginho veio a ter-se comigo.

--- oi gordinho. Hoje cedo veio um senhor te procurar, parecia ser muito, mas muito velho, mas sinceramente eu gostei muito, mas muito dele.

--- é... e o que ele queria.

--- não sei. Eu disse para ele voltar a tarde, que com certeza você estaria aqui sentado olhando a turma jogar bola.

--- bem... aqui estou, quem sabe ele volta e nós conversamos.

O tempo começou a mudar. Algumas nuvens escuras começaram a ser formar. Com certeza iria chover.

Caminhei em direção ao Santuário.

Foi quando ouvi uma voz, que vinha a minha costas.

--- claiton....Gordinho.

Parei no segundo chamado e virei-me bruscamente. Eu já estava ao lado da imagem de Santa Terezinha, que ficava exposta em um pedestal fora da Igreja.

Um ancião. Se assim eu poderia chamar aquele homem de roupas mirradas, barba longa, cabelos brancos e compridos vindo em minha direção. Sentei-me em um dos degraus. Ele veio e sentou-se ao meu lado.

Tinha um semblante sofrido, mas seus olhos eram tranquilos.

Mexeu em um dos bolsos e retirou um papel. De imediato eu vi que era o bilhete que eu tinha escrito e colocado na rabiola do meu papavento. Meu Deus ele tinha encontrado o meu testamento de lamentações.

--- foi você quem escreveu isto, menino.

eu nem precisava pegar o papel, para confirmar. Mas por força do habito, peguei e reli todo o texto.

--- sim.

O ancião cofiou a barba e disse o seguinte.

--- menino, preste bem a atenção, pois vou falar uma vez só, e espero que você entenda o significado das minhas palavras, porque são elas que nortearão sua vida, no futuro. Quem não estuda vive em um subterrâneo onde não faz frio nem calor, onde o sol não brilha e que não é visitado nem pela chuva e nem pelo vento, um subterrâneo onde não vemos a Luz. Isso se chama ignorância. Nada é mais atraente e prazeroso do que brincar, correr, jogar bola, empinar pipa, rir, se divertir, enfim, fazer de conta de que a vida é um Paraíso, e que assim viveremos por toda a nossa vida. Porém, isso não é verdade, quando crianças devemos sim brincar, brincar muito, e fazer tudo aquilo que eu sei que você gosta, porém, estudar é algo muito mais importante que qualquer diversão que você possa imaginar. Cada vez que você adquiri um conhecimento da Matemática, Geografia, História, Ciências, Letras, Línguas, com certeza você abre espaço em sua mente para uma brincadeira que agora você não conhece. - O ancião fez uma pausa, esperando uma pergunta, e eu perguntei.

--- e que brincadeira é essa que eu apreendo estudando, que eu não conheço. Indaguei.

Novamente ele coçou a barba.

--- A vida menino, a brincadeira mais importante que temos no decorrer de nossa existência. Quando você estuda, sua mente se abre, você consegue ver quem esta errado, e porque ele está cometendo esses erros. Você então, usando os conhecimentos adquiridos com seu estudo, pode corrigir esses erros. Digamos que seja um jogo, um jogo do qual você com seu estudo pode mostrar os erros para aqueles que não estudaram, o que se o fizeram não souberam aplicar corretamente o que foi apreendido com clareza. Entende agora a importância do estudo.

--- sim.... acho que sim. Caso eu estude, eu posso ajudar a outras pessoas, posso ter uma vida melhor, e assim proporcionar o mesmo para a minha família. É isto.

--- exatamente, você é inteligente.

Era a primeira vez que alguém me dizia inteligente. Gostei.

Os sinos da Igreja da Santa Terezinha começaram a badalar incessantemente, numa musica forte e orquestrada, olhei em direção a torre. De alguma maneira eu estava feliz.

Voltei os olhos para o ancião, e ela já não estava mais ali. Desapareceu no ar, da mesma maneira que o meu papavento havia desaparecido há uma semana.

LEMBRANÇAS DA MINHA INFÂNCIA.

Ton Bralca
Enviado por Ton Bralca em 14/10/2016
Código do texto: T5791166
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