Marcas do que ficou...
 

Era sábado e, diferentemente de outros fins de semana, o pequeno vilarejo fervilhava em luzes e enfeites ... os moradores se multiplicavam.
Parecia que todos vinham para as ruas ao mesmo tempo ... o povo local dizia que era véspera de Natal.
Tudo era surpresa para mim.
A pracinha, por onde passava todos os dias para buscar o pão, me deixava encantada com seus canteiros de rosas, toda decorada com luzes coloridas sobre as plantas, coisas que nunca tinha visto antes.
Na escola em que eu estudava, foi representada uma linda peça sobre o nascimento de Cristo e eu, dentro da minha inocência mais profunda, ficava estupefata com tudo aquilo, principalmente porque jamais havia ouvido falar nada sobre Natal. Achava que se tratava de uma festa anual para homenagear alguma pessoa importante do lugar.
Madrinha, provavelmente envolvida pelo espírito do Natal, fez um presépio no canto da sala e colocou ao lado uma pequena árvore com muitas bolas coloridas. Além disso, ela se esmerou e costurou algumas roupas novas para Carla, sua filha adotiva.
Parecia que ela não era a mesma criatura rude e desprovida de sentimentos que eu conhecia. Depois, com o tempo, é que eu fui entender sobre essa coisa toda de espírito natalino que, de alguma forma, mesmo por pouco tempo, tinha o poder de modificar as pessoas.
Por outro lado, eu continuava ali ... nada mudara... com minhas simples sandálias nos pés e o meu vestido de chita tão surrado que parecia retratar a minha própria vida.
Aquilo tudo me trazia um ar de interrogação, que por mais que eu imaginasse, não me vinham as respostas!!!
Madrinha tinha saído mais cedo para o trabalho por conta das festas, já que o salão ficava lotado de gente que vinha arrumar os cabelos e unhas, na tentativa de se mostrarem mais elegantes e bonitas, naquela data considerada tão importante !!!
Na verdade, essas mudanças de rotinas do povo acabaram me deixando muito mais atarefada que o normal, pois tinha que levar o almoço para ela, preparar a ceia de Natal, além de lavar e encerar todo o piso da casa.
Já era noite quando Padrinho me chamou para uma comemoração de Natal que estava acontecendo ali perto de casa. Ele disse: - Vamos que ela vai demorar a chegar. E, já que tudo indicava que Madrinha ia realmente demorar, aproveitei a oportunidade e fui até lá com ele.
Extasiada e embriagada com tudo aquilo que via, perdi a noção do tempo e acabei me desvencilhando do Padrinho.
Quando dei conta, já havia passado muito tempo e, desesperadamente eu não conseguia encontra-lo. Cheguei à conclusão que ele tinha embora. Entrei em pânico e corri de volta pra casa imaginando que talvez Madrinha não tivesse chegado ainda. Eu tinha certeza que Padrinho não ia chamar a culpa pra ele, caso ela já tivesse retornado.
Quando cheguei, percebi que Madrinha estava furiosa me esperando do lado de fora da casa. Não tive tempo de dizer uma palavra sequer.
No degrau do portão, ela puxou-me pelos cabelos arrastou-me até o seu quarto, pegou a palmatória e bateu na minha cabeça com tanta força que fiquei, momentaneamente, sem visão. E ela, sem se dar conta do que havia ocorrido, continuava me dando bolos nas mãos, e reclamava dizendo que não era para eu sair de casa.
Naquela noite adormeci com fome, apesar de todos os quitutes que havia preparado ao longo do dia. Ouvia as músicas natalinas e as conversas ruidosas que vinham da sala, onde os familiares se abraçavam e trocavam presentes entre si. No meu canto escuro, ficava pensando e acreditando que essa história que escutara na escola que falava do Cristo, o filho de Deus, que veio à terra pra cuidar dos pobres e oprimidos era tudo invenção.
Como acreditar depois de tudo o que estava sofrendo ?
Me veio uma ponta de tristeza ao lembrar, por instantes, do rosto de minha mãe ...