25 de outubro não é um bom dia.

Há anos tenho ciência disso. Há exatos 41 anos sei que o dia 25 do mês dez traz profundos incômodos e tristeza na alma. Em 1975 a ditadura resolveu matar o jornalista Wladimir Herzog no DOI-CODI de São Paulo. Tudo em meio a mentiras construídas no raso, na boçalidade e no sarcasmo.

Adolescente na época, eu sentia o cheio de algo nauseante no ar, embora eu ainda tivesse pouco conhecimento acerca da barbárie que uma ditadura é capaz de fazer. Alguns professores demonstravam a sua indignação e revolta, mas nada, absolutamente nada poderia ser tão declarado naqueles tempos tão sombrios

Fomos aprendendo a mudar o país, a sair às ruas, gritar, levantar bandeiras... mas as mudanças são tão lentas, meu Deus! Mas começamos a despertar e a dizer “não” ao sadismo institucionalizado daqueles tristes tempos.

E o tempo continuou a sua caminhada, intensa e rotineira. E a terra a girar ao redor do sol, incansavelmente.

E há exatos 7 anos desencarnava uma pessoa que, de tão especial, eu entendo que foi um anjo a caminhar entre nós, a expandir suavidade, consideração pelas pessoas e uma paz graciosa. Heloísa Helena Zipell da Silveira.

Jamais imaginei que uma secretária de direção fosse a pessoa mais importante de um colégio centenário – um tradicional colégio jesuíta de Florianópolis. Sempre presente, jamais irritada pelo excesso de responsabilidades. Jamais disse não a qualquer solicitação de qualquer pessoa, colegas, professores, alunos, pais. E tudo o que se pedia, Heloísa atendia na hora, com capricho e perfeição, além de sempre nos receber com “oi, amor” mesmo pelo telefone. Uma empatia como jamais vi.

Certo dia, o meu marido sofreu um AVC. Liguei prá ela desesperada e disse: “Heloísa, me ajuda”. Com toda a consideração e sentimento ela me ouviu e tratou de providenciar quem aplicasse provas prá mim naquele dia, e eu não precisei me preocupar com mais nada nesse assunto.

Aquele 25 de outubro estava ensolarado. Saí de casa feliz para o colégio, com gosto de primavera e os bem-te-vis me acompanhando pelo caminho. Mal me adentrei e vi a notícia estampada num papel junto ao ponto dos funcionários. O anúncio do falecimento de Heloisa. Não acreditei de tal forma que perguntei: “qual Heloísa?”

Era a única funcionária com esse nome, mas era inacreditável demais - imaginar um anjo nos abandonando.

Vez ou outra eu conseguia um tempinho e tomava café com ela. E ela me dava, para acompanhar, as bolachinhas chics da diretora acadêmica. Eu achava isso o máximo de cumplicidade. Porque todas as coordenações de todos os colégios acreditam que professores só podem comer cream craker e bolacha maisena. Mais que isso é luxo demais para professor. Mas a Heloísa abria um armarinho na salinha do café e dividia com a gente o que havia de melhor no mercado bolachológico. E tinha sempre palavras macias para dividir.

Vi alunos chorando o desencarne da nossa secretária. Jamais eu vira um enterro com um número tão absurdo de pessoas. Foi notícia no jornal do almoço – o jornal do meio dia da RBS. Saiu na imprensa escrita. A quantidade de flores fez com que o carrinho funerário fizesse várias idas e vindas. Uma colega teve que retornar porque não havia uma única vaga para o seu carro.

Isso porque Heloísa era um anjo no meio de um turbilhão de pessoas extremamente estressadas pelo rigor das cobranças de perfeição num meio tantas vezes hostil.

Já ouvi muitas pessoas dizerem :”Ninguém é insubstituível”. A Heloísa é. Sem contar que era uma mãe carinhosíssima, a mais absoluta expressão do amor incondicional pela vida.

Alguns meses se passaram e eu vi a sua mãe. Conversando com outra pessoa, ela disse, pensativa e para si própria: “eu sou a mãe da Heloísa”. Tive uma imensa vontade de me levantar e abraçá-la muito, falar algumas coisas, mas não tive coragem. A Heloísa era grande demais diante da minha pequenez.

No ano anterior, quando eu fiz 50 anos – e ela nem sabia e eu também não disse – ela me ofertou uma muda de araçá. Havia chegado algumas mudas, mas a de araçá única disponível. Quando eu escolhi, com muito jeito, ela disse que o araçá era dela. Recuei com naturalidade, é lógico. Mas ela fez questão absoluta para que eu a trouxesse. Abriu mão daquela muda com muita graça e desprendimento. Aceitei. Aquela muda já virou uma pequena árvore, que cuido com muito mais zelo que qualquer outra. O pé de araçá está bonito, cuidado, com adubo orgânico.

Materialmente falando, essa é a lembrança que tenho dessa pessoa ímpar. Mas, o melhor de tudo, conheci e convivi com um anjo por duas décadas. Ah! Se eu tivesse aprendido um pouco mais com ela... se eu tivesse um pouco da sua simpatia e sabedoria, tenho certeza, eu seria muito feliz.

Existem anjos que circulam entre nós e e tive o santo privilégio de conviver com você..

Siga em paz, Heloísa. Siga com os outros anjos, seus companheiros de vida. E, quando puder, mande notícias . Rezo por você todas as noites, como faço pelos meus parentes, pela minha madrinha Norma, pelos meus ex professores, ex alunos. Você está ali, perto da minha tia Norma, que também era carregada de sabedoria e graça.

Fique com Deus e com o nosso respeito. E sempre gosto de pensar: você foi embora sem saber da admiração que sempre nutri por você.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/10/2016
Código do texto: T5803046
Classificação de conteúdo: seguro