Como se sente um analfabeto

Era madrugada, e eu acordei com um som diferente, uma cantoria de pássaro, vê lá se isso é hora de pássaro ficar cantando. O pior é que eu nem sabia que tipo de pássaro canta daquele jeito, a quem eu deveria culpar por outra noite de insônia? Em matéria de canto de pássaro, eu não vou além do bem-te-vi, e ainda assim com algumas dúvidas, já que de uns tempos para cá eles cantam apenas “te-vi”. Mas aquilo que me acordou não era um bem-te-vi, era um canto longo, bem ritmado, parecia que o pássaro realmente estava querendo fazer música. Parei para escutar – que remédio, não conseguia voltar a dormir mesmo.

Diabos, como cantava bem. Eu precisava descobrir quem era o autor daquilo, só não sabia como. Não daria muito certo perguntar a alguém, eu teria que reproduzir o canto do pássaro para que eles tivessem idéia do que eu queria dizer, mas como é que se reproduz um canto desses, eu que não sei assobiar mais do que fiu-fiu? Por sorte vivemos numa era tecnológica, então me ocorreu que eu podia gravar o canto no celular para depois procurar pelo dono na Internet, nem que fosse pássaro por pássaro.

Eis uma cena que bem merecia ser pintada: às quatro da manhã, uma janela se abre no condomínio, e dela sai uma mão segurando um telefone, uma mão que fica esticada por meio minuto, o suficiente para registrar uma boa amostra da misteriosa sinfonia. Não imagino o que o porteiro possa ter pensado, assistindo à cena tão insólita pelas câmaras de segurança do prédio. O fato é que eu já tinha uma prova do acontecido e fui pesquisar a respeito.

Vocês não sabem do melhor: era um sabiá. Juro por Deus, um sabiá. Quer dizer então que o sujeito pode escrever crônicas há mais de dez anos, pode lançar dois, três livros de crônicas, pode se encantar com as crônicas do Rubem Braga, pode se dizer um entendido no gênero, e mesmo assim não conseguir identificar o canto de um reles e prosaico sabiá! Tive então uma grande vergonha de mim mesmo, do pobre ser urbano em que me tornei.

E lembrei-me de uma tarde em Brasília, uma tarde em que eu me descobri um perfeito analfabeto, pois não há meio de chamar de outro modo aquele que caminha em uma quadra arborizada sem conseguir identificar uma mísera árvore que seja. Não conhecia o nome, não reconhecia as folhas, nada sabia sobre os frutos, e, no entanto, sabia que aquelas árvores passavam alguma mensagem. Meu olhar vagueava por todas elas, ávido por compreensão... Mas em vão: eu não havia aprendido a ler.

E quando percebi que se tratava de um sabiá, tive a noção de que o meu analfabetismo se estende por muito mais áreas do que eu imaginava. Nada sei de árvores, de flores, de pássaros, de ventos, de peixes ou de estrelas. Pode-se efetivamente falar em alienação, mas não dessa alienação de quem deixa de ler jornais, uma muito pior, a alienação de quem não sabe o próprio lugar que ocupa no Universo e as maneiras de interagir com suas forças e belezas mais evidentes. Que será que todas essas coisas me diriam, se eu soubesse interpretar as suas mensagens? Quantas vezes eu não devo ter sido passado para trás pela vida, simplesmente por não saber decifrar os seus sinais?

Não deixa de ser admirável que, nessas condições, ainda me deixem votar e ser votado.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 30/10/2016
Reeditado em 30/10/2016
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