OS SINOS
 

                                                  
        A amiga de apenas 77 anos, internada em casa de repouso – leia-se asilo; o apartamento, habitat há décadas também de seus livros e discos, já alugado a estranhos por seus três filhos.
        Eu te olho nesta foto na ‘casa de repouso’, ao lado da mais velha das irmãs, com 93. Penso: “Há apenas dois anos nos vimos pela ‘última’ vez.”
        Não a reconheço no rosto balofo. Não a reconheço no ventre desconforme. Não a reconheço nas pernas lassas. Não a reconheço nos sapatos de lã ou de algo que se lhe assemelhe, esses sapatinhos patéticos. Não reconheço seu sorriso. Não reconheço seu olhar.
        Onde os índices da brilhante inteligência, dos poemas extraordinários? Onde a límpida lucidez da sua voz?
        Pergunto-me se o Alzheimer já lhe tirou plenamente a percepção, o conhecimento do que ela mesma foi no decorrer de sete décadas e meia. Se é assim, que bom, não sabe que morreu! Mas, e se alguma lucidez ainda lhe há?
           Olho, pela janela, minha paineira viva em frente a este prédio onde moro. Vejo-a, minha paineira, e choro por ti, amiga... e choro por mim e por todos os deserdados de si mesmos, lúcidos ou não de tal fato, nas múltiplas veredas e ruas sem saída desta vida-cruz que algum dia em rosas, poucas que tenham sido, floresceu.
       Choro e o título “Por quem os sinos dobram?” fica-me ecoando... ecoando... por todos os cômodos de mim... por todos os ermos de mim...
 

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Para ti, amiga, este terceto, com meu abraço mais fundo:

 
Canta, pássaro!
Não sabes que sem preço
só com valor o teu canto?

 
 
                                          26/Novembro/2016.