Médium - zelador de mortos

Médium

- ZELADOR DE MORTOS -

Arquimedes, durante toda sua infância e juventude foi molestado por seus amigos, hoje chamamos isso de bullying, naquele tempo era apenas uma gozação que sofria por sua obesidade.

Apesar de sempre estar triste, pois o peso não permitia que ele brincasse com os amigos da maneira que queria, uma disfunção hormonal o mantinha sempre acima do peso. O tratamento era caro e o SUS não cobria as despesas, sendo de família pobre, optou por continuar como era.

Havia, entretanto uma peculiaridade em Arquimedes que quase ninguém percebia, pois ela só vinha à tona quando ele estava sozinho.

Passava um longo tempo enclausurado em seu quarto, ou então no saguão da Igreja Matriz, falando em voz baixa, às vezes sorrindo, outras vezes chorando, mas escondia tudo o que sentia dentro da sua mente e do seu coração.

Arquimedes cresceu, não tinha estudos, mas percebeu que conseguia se sentir muito bem quanto estava próximo ao cemitério, então começou a freqüentá-lo assiduamente. Tanto foi que o responsável ao ver aquele jovem perambulando entre os túmulos o chamou até o seu escritório.

--- bom dia Arquimedes, pelo que vejo você gosta de conviver com os mortos.

O jovem esboçou um sorriso, mostrando os dentes perfeitos, que escovava com uma massa que fazia de cravo e alecrim, pois o dinheiro não permitia que comprasse um dentifrício.

--- gosto muito senhor, sei que posso ajudá-los, e isso me faz sentir útil.

O responsável pelo cemitério fez uma cara de espanto.

--- acho difícil alguém ajudar quem já morreu, mas isso não vem ao caso. Estou precisando de um coveiro, você é forte, jovem, o salário é bom, não precisa ter estudos, apenas disposição para o trabalho. O que acha?

O rosto de Arquimedes se encheu de alegria. O que ele poderia querer de melhor para si do que conviver com os mortos. Sorriu. E deu a resposta de pronto.

--- aceito... Começo hoje se o senhor quiser, o cemitério acabou de abrir, e tenho certeza de que logo o velório terá um amigo para ser velado e enterrado.

O responsável por aquela área publica, não acreditava no que ouvia, mas tinha certeza de que Arquimedes estava feliz com o emprego.

Preparou os papéis da contratação, solicitou que o jovem trouxesse a carteira de trabalho, ele seria contratado por prazo indeterminado, teria férias, teria décimo terceiro e fundo de garantia.

Os papéis foram assinados, um uniforme foi entregue cor azul, como a cor do Céu, no bolso escrito em letras góticas Zelador de Mortos.

Essa frase encheu Arquimedes de orgulho, agora ele tinha uma função junto aos seus amigos, não precisaria mais se apresentar, bastava olharem no bolso de seu roupão. Isto é, se vocês acreditam que ele poderia conversar com os mortos.

ZELADOR DE MORTOS.

O dia começou tranqüilo. O primeiro velório foi de uma senhora de 92 anos, muitos familiares, e Arquimedes cumpriu o seu ritual quase que imperceptivelmente.

Alguns presentes o ouviramele falar baixinho próximo ao caixão.

--- sei que está feliz, teve uma vida inteira de bondade, amor e paz com os seus filhos, seus netos, e toda a sua família, agora chegou à hora de descansar em Paz.

Os familiares o acharam um tanto estranho, mas o que queriam era enterrar aquela que lhes deu a vida, o amor e o carinho, mas que nos últimos anos lhes tinha dado muito trabalho se esqueceram rapidamente de tudo o que ela tinha feito. Infelizmente nós seres humanos não valorizamos o que tivemos, mas sim somente o que temos.

O almoço de Arquimedes foi um marmitex servido a todos os que trabalhavam no Cemitério, tinha um refeitório, e lá foi ele sentar-se a mesa, coisa que nunca tinha feito antes.

Ficou em um canto, queria comer o mais rápido possível para voltar aos seus afazeres, se sentia melhor junto aos mortos do que próximo aos vivos.

Tinha uma audição excelente, e ouviu a conversa entre dois funcionários que trabalhavam no escritório.

--- você viu o resultado da Mega Sena. – perguntou Ricardo, o escriturário.

--- sim... Cara de sorte ganhou o premio sozinho, saiu para a cidade de Lagoinha. Conhece?

--- não... Nunca tive a curiosidade de conhecer, dizem que é a mais religiosa do Brasil, e que a população é muito hospitaleira.

--- verdade... O ganhador pode ser um morador, como pode ser alguém que apenas passou por lá, no final de semana sempre vem muita gente de fora para o descanso.

Arquimedes acabou de comer e se levantou. Pelo movimento junto ao portão central um caixão estava chegando, e como o carro funerário era da Prefeitura, com certeza alguém muito pobre tinha morrido.

Acompanhando o caixão havia a viúva e mais quatro filhos, a idade variava entre oito e 15 anos, todos choravam copiosamente. Um choro de lastimo, dor e amor. O defunto com certeza tinha o amor da família.

Foi ele quem descarregou o caixão e o colocou no carro que transportaria para o velório. Ia levar o caixão para o primeiro santuário, onde as pessoas que ele achava que merecia o melhor lugar para passar os últimos momentos antes da cova mereciam. Porém, o responsável pelo cemitério veio até ele.

--- Arquimedes, leve o caixão para o último santuário, a família é pobre, não tem mais ninguém para acompanhar o velório. – isso foi dito baixinho ao pé do ouvido de Arquimedes, ele não concordou, mas tinha que cumprir o que há ele fora ordenado.

Durante o percurso até o local do velório ele começou a falar baixinho.

--- Como vai amigo, você sabe o que aconteceu? Ele via o que nenhum outro via. A viúva estava com a mão sobre o caixão e os filhos também, porém enquanto Arquimedes empurrava o caixão ao seu lado seguia aquele que agora iria descansar para sempre da vida terrena e desfrutar do plano celestial.

--- enfartei assim do nada, bem na verdade não foi do nada. De vez em quando eu tinha uns piripaques, mas nada grave.

--- entendi. – murmurou Arquimedes, completando a frase em seguida. Aconteceu alguma coisa que tenha provocado o seu infarto?

--- sim.

--- quer me contar.

--- preciso contar há alguém, pois só assim eu poderei fazer minha esposa e meus filhos felizes, passamos tantas privações na vida, que agora depois que o corpo segue nesse caixão, minha alma poderá trazer a felicidade para eles.

Arquimedes continuava empurrando o caixão. A família seguia solitário o cortejo, não percebiam o dialogo entre um vivo e um morto.

--- sou todo ouvido, pode falar que delicadamente passarei o recado para a sua família.

--- sei que assim você fará, nós mortos sabemos distinguir o bom e o mau coração.

A alma, o morto como quiserem começou a contar sua história.

---Na semana passada eu peguei um serviço para fazer na cidade de Lagoinha, gosto muito de lá, e sempre que posso arrumo um campo para foiçar e um gramado para cuidar. Eu e o Eguiberto, meu filho mais velho, aquele de chinelo de dedos e camisa surrada que segura meu caixão ao lado da mãe. Arquimedes ergueu os olhos. Um belo rapaz, as lágrimas molhavam suas roupas.

--- sei..., o que aconteceu em Lagoinha. – perguntou o zelador de mortos.

--- já te conto. Recebi por meu trabalho a quantia de 180 reais, já dava para comprar a comida para pelo menos 10 dias, porém, algo me dizia que eu tinha que jogar na Mega Sena, então, aproveitei um descuido de Eguiberto e fui a te a loteria e fiz um jogo.

--- entendo. – esse foi o motivo da sua morte?

--- sim foi, e só você pode me ajudar.

Arquimedes estava disposto a tudo para fazer com que os desejos do morto fossem realizados.

--- o que quer que eu faça.

O carro que levava o caixão chegou até a capela do velório, era a mais simples de todas. O zelador de mortos abriu com uma chave que trazia no chaveiro que tinha todas as chaves do cemitério. Há muito aquele local não era usado. A imagem de Nossa Senhora estava altiva sobre o altar, ele acendeu todas as velas.

--- perguntou baixinho para o defunto que agora o olhava já com o tampo do esquife aberto. Qual é mesmo o seu nome.

--- Luiz Carlos do Espírito Santo, ao seu dispor.

Arquimedes sorriu. Infelizmente, aquela alma que agora acompanhava o corpo em nada poderia dispor, mas ele sim poderia ajudar em alguma coisa.

--- o que quer que eu faça. – perguntou o zelador de mortos.

--- É simples, ontem, quando eu fui conferir o jogo aqui em Pinda, vi que eu tinha ganhado a Mega Sena, esse foi o motivo do meu infarto, a alegria foi tão grande, que meu coração não agüentou.

--- caramba, Espírito Santo. – a voz de Arquimedes soou um pouco mais alta.

A família inteira respondeu.

--- Amém. – pensaram que ele também tinha terminado sua oração.

--- E onde está o bilhete premiado, o ganhador levou 20 milhões de reais.

Vocês podem não acreditar, mas até parece que um sorriso se esboçou nos lábios do defunto.

--- pois é amigo, o bilhete está na carteira de trabalho do Eguiberto, ele a leva em todos os lugares procurando emprego, fui eu quem o coloquei lá. Os números eu sei décor, pois é a data de nascimento dos meus filhos, a minha e da esposa, foram apenas seis números e agora eles estão ricos.

--- vou resolver esse problema para você, depois vou levar o seu corpo carnal para a cova, e você vai descansar em Paz. – dizendo isso, Arquimedes se aproximou do primogênito.

--- lastimo sua perda Eguiberto. – o jovem olhou para o estranho.

--- como sabe o meu nome.

--- seu pai foi quem o disse.

--- então se conheciam.

--- digamos que o conheço agora, mas isto não vem ao caso.

O jovem ficou olhando um tanto confuso para o Zelador de Defuntos.

--- não estou entendendo. – disse finalmente, colocando a mão sobre a mão do pai morto.

--- não precisamos de explicações, mas sim de soluções para alguns problemas. Você trabalhou com o seu pai no último final de semana em Lagoinha, não foi.

--- sim foi eu vou sempre ajudá-lo, ele tem pequenos piripaques, ou melhor, tinha.

--- eu sei, ele me contou.

--- então foram bons amigos.

--- somos... Você está com a sua carteira de trabalho no bolso.

--- estou... Meu pai sempre dizia que o bom trabalhador tem que mostrar a carteira, infelizmente até o momento não consegui nenhum emprego, mas estou no primeiro colegial, e vou ser médico, tenho certeza de que Deus vai me ajudar.

--- Ele já ajudou.

--- como assim. Meu pai morreu, e tudo agora vai ficar mais difícil.

--- engano seu, deixe-me ver sua carteira.

Eguiberto pegou o documento que guardava no bolso da camisa envolto em um plástico para melhor proteger, e deu para o Zelador de Corpos.

Arquimedes desenrolou o plástico com cuidado. Apesar de acreditar que conversava com os mortos, às vezes até ele mesmo duvidava desta capacidade espiritual.

Cuidadosamente foi abrindo página por página, até que deparou com o bilhete premiado.

05, 06, 11, 13, 30,31.

--- Eguiberto, este bilhete é da Mega Sena, o seu pai jogou na cidade de Lagoinha, e são os números do aniversário, seu, dos seus irmãos, da sua mãe e do seu pai. – A viúva se aproximou os filhos menores também. --- Ele está premiado, vocês são herdeiros de 20 milhões de reais, um presente do seu pai para vocês, ele quer que você cuide da família, faça todos estudarem, e que você seja um excelente médico, ajude o maior número de pessoas possíveis.

Houve um abraço mutuo.

--- como o senhor sabe que ele está premiado, como o senhor soube que havia um bilhete dentro da minha carteira de trabalho. – Eguiberto estava tremulo os irmãos assustados e a viúva incrédula.

--- Não precisa de explicações, o corpo do seu pai será enterrado agora, mas a alma dele está sorrindo, feliz, de ver que finalmente ele vai poder ajudar a família.

Assim dizendo, Arquimedes fechou o caixão começou a empurrar o veiculo para direção da cova. Não tinha mais amigos para conversar, aquele último tinha lhe dado uma grande alegria.

Aproximou de Eguiberto.

--- cuidado com o dinheiro, é muito dinheiro, muitas pessoas vão procurá-lo, porém nem todos querem ajudá-lo, pense sempre em seu pai, ele estará olhando por você.

--- eu quero ajudar o senhor Zelador de Mortos, tenho certeza de que meu pai gostaria.

--- não preciso... Tenho tudo o que eu quero. Um emprego, um dom e principalmente novos amigos todos os dias. Vai com Deus.

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