Conversas com Santa Luzia.

Já nasci cegueta. Imagino a decepção dos meus pais quando abri os olhos na Maternidade São Paulo! Deve ter sido muito deliciada a situação ainda mais naquela década de 50, com mais dificuldade de acesso à ciência.

Um dia, meu pai achou, no chão, uma medalhinha de ouro com a imagem de Santa Luzia. A minha mãe me entregou a medalha, mas eu não sabia o seu significado e importância. Por muitos anos ela esteve em meu poder.

Com o tempo, fui aprendendo que Santa Luzia é a protetora dos olhos. Conta a história que o governador de Catânia, na península italiana do século III , ficou furioso por sabê-la cristã e mandou que a matassem. A denúncia veio do seu noivo, quando Luzia resolveu não mais se casar e se dedicar à religião. Foi assim que os carrascos jogaram sobre ela resina e azeite fervendo, mas nada lhe aconteceu .Os carrascos continuaram com o seu martírio e lhe arrancaram os olhos. Daí vem a devoção a Santa Luzia como protetora dos olhos.

E pensei em conversar seriamente com ela, no respeito e na consideração pelas suas opções de vida e enfrentando a dureza da crueldade dos verdugos.

- Pois é, Santa Luzia, será que a senhora está acreditando no que está vendo?

- O que, minha filha?

- Santa Luzia, há 48 anos a cegueira tomou conta do país em função da imposição do AI-5. A sra. se lembra disso?

-Impossível esquecer, não é mesmo?

- Então, a cegueira voltou.

- A cegueira foi imposta, fia. Naquela época não foi todo mundo que cegou e...

- Eu sei, Santa, mas foi uma cegueira cruel demais. Foi a tentativa de que todos cegassem.

- Mas nem todos ficaram sem luz, minha querida.

-E agora, de novo. Tem lá no senado uma corja – desculpe, Santa – mas é uma corja mesmo de cegos, toupeiras , insanos, inescrupulosos e... Eles resolveram roubar direitos adquiridos com muita luta, envolvimento, suor. Esse senado nos deixou sem chão, jogaram o país no lixo e o mundo civilizado nos avisa dos dramas futuros.

- Filha, eu sei de tudo isso. Mas saiba que a cegueira deles é moral. Não adianta querer falar comigo sobre esse assunto. É cegueira de alma, total falta de doçura e entendimento das coisas da vida. Não vou conseguir dar jeito nisso...

- Santa Luzia, mas tente um pouquinho, só um pouquinho. Eles vão desgraçar toda uma nação e isso é crime.

- É mais do que crime, filha. É crime hediondo, uma insensatez sem limites. Mas, peraí, muitos de vocês apoiaram esse golpe, não é? Fiquei sabendo da existência até de um pato...

- Santa Luzia, o caso do pato foi muito simples de se entender. O empresariado inventou isso prá, por baixo dos panos, dizer que os patos patetas iriam pro brejo em nome dos interesses do capital. Um montão de gente achou o pato uma tetéia e acreditou que eles iriam pagar o pato... ah, é um vexame só essa ignorância.

- Filha, eu sei que milhões não têm nada a ver com isso porque estavam no lugar certo, mas cegueira moral é coisa que não se resolve facilmente. Essa corja, como você chama, vai ter que reencarnar muitas vezes, aí sim, pagar o pato pelas maldades que fizeram. Vão ter que passar muita miséria, muita fome, passar pela humilhação do analfabetismo, ficar sob as pontes, dormir ao relento e tudo isso para aprender a respeitar aqueles dos quais lhes tiraram o pão. É uma questão de tempo.

- Eu entendo isso, santa, mas não dá prá apressar um pouco as coisas? Nós vamos ter que voltar de novo a fazer parte do mapa da fome.

- Não dá, fia. A espiritualidade é sábia e diz – a plantação é livre, mas a colheita é obrigatória.

- E vamos continuar amargando toda essa desgraça?

- Vão ter que lutar muito para, literalmente, abrir os olhos do povo. O caso desse senado é dureza de alma, ignorância das questões humanas. Eles têm os olhos vendados para o próximo e debocham dos pobres, que também são filhos de Deus e que precisam de condições para manter a dignidade. Filha, eu não tenho como te atender. Mas saiba – se eles não se redimirem nessa vida, a próxima vai ser de doer...

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 13/12/2016
Código do texto: T5852558
Classificação de conteúdo: seguro