Linha

mais um dia andando pela rua, olhando pro céu, sem interesse, imaginando que um avião vai cair e mudar alguma coisa do cotidiano estúpido. não caiu. mais uma jornada longa que começa cedo e acaba tarde no trabalho. linha do metrô.

uma garota de costas falando ao celular no vagão. normal. gravava um áudio para enviar a alguém. whats app deveria servir pra se ter praticidade. um aplicativo de texto. ok. adolescentes.

e ela insistia em continuar gravando. falava miríades de sentimentos e histórias, entrecortadas por “tipo assim”. breve sorriso, o que ela poderia estar gravando por mais de cinco minutos? quem escutaria tudo isso? mulheres. eis que um aplicativo de texto havia sido subvertido em um gravador. seus olhos de nissei, expressivos. calça bag com estampa do exército, cabelos molhados, camiseta branca. piercing no nariz. algo que eu imaginava que encontraria em São Paulo, mas aqueles olhos. ela respirou, uma pausa, vento da rapidez do metrô, balanço de metal. com o dedo pressionando a tela do celular, continuou gravando sua ilíada. eu sorri, pela inversão da minha lógica.

entra um idoso a um metro de distância dela, reclamando que ela está na porta. Nesse momento, o retorno à realidade. A saída da realidade dela, a entrada no nosso universo conjunto. Olhar irônico, olhos felinos, “a essa hora da manhã já tá assim?!”, eu sorri de volta. “não tem nenhum espaço pra ele passar, né?” um senhor ao meu lado olhando pra mim, me ecoa. ela toca a tela do celular e retorna a gravar seu Ulysses adolescente, de volta a um universo distante, feminino, sem portas e sem nexo. ela não sai. triste, saí.