Fora de órbita

Era uma noite dessas de outono, findando setembro e o tempo já era mais fresco pelas noites. Ideal para dormir, quando não se há mais nada para fazer. Mas melhor mesmo para a maioria ali em Portugal são os cafés, tomar um café bem quente e forte, um chocolate quente ou um bom vinho do Porto para esquentar. Mas eu estava a dormir. E já passava das duas da manhã quando meu sono foi atropelado pelo celular. E aquilo me era um tanto bizarro e, meio atordoada atendi sem enxergar direito quem era. A voz de Ilza confusa me fez pular da cama. Mas como destravar o portão? Pelo visor da campainha ela não estava lá. Pelo celular falei que ela não estava no portão do nosso prédio. Em meio ao conflito de informações corri à casa de banho, sem saber ao certo o que procurava. Como estava de pijama, percebi que era de um casaco que eu estava a precisar. O apanhei rápido e desci a correr, quando pelo telefone, ela dissera a enfatizar: “─ E venha logo que a polícia tá aqui!”.

Apressando os passos, saí do elevador, destravei o portão e na parte térrea, o silêncio a reinar. Ao pé da rua, imóvel eu fiquei a observar os murmúrios da madrugada, mas a noite estava a arrefecer mais e mais. Enquanto isso, estava eu ali na calada da madrugada a observar algum indício daquela gaja tresloucada. A caminhar alguns metros e deixando o prédio em que residimos, passei pelo próximo e, no terceiro, mais em baixo, mas de arquitetura idêntica ao que residimos, ouvi alguns murmúrios. E se a noite já era muito fria, um gelo glacial descia por minha espinha. Se calhar, sequer sentia as pernas. Mas quem não as sentia também era aquela figura, sangue de meu sangue, numa cena deprimente, pois Ilza estava sentada no chão, e suas pernas parecia não suportar o peso do feixe de cana que ela estava a carregar.

De um lado ela, sentada, a chorar e a falar sem trégua. Do outro, dois policiais e uma viatura. E a mulher, cujo álcool a estava a dominar, dizia aos policiais que morava naquele prédio. “É aqui seu polícia. Eu moro aqui”. E quando a vejo, meio sem graça, apresento-me e digo que sou irmã da gaja esparramada ao chão, cuja fisionomia e a atitude chegam a envergonhar. E ela a insistir entre risos e lágrimas, como que a delirar, para que os policiais a levassem presa. “Me leve seu polícia! Me leve! Já que eu não sei a casa onde moro, pode me levar presa. Se errei minha própria casa...pode me levar.”

Naquela ocasião estúpida, Ilza em desequilíbrio alcoólico, põe-se a cantar: “Seu guarda eu não sou vagabundo, eu não sou delinquente, sou um cara carente...”, de Bruno e Marrone. Era demais! Eu tinha de ser a cabeça pensante e tomar as rédeas daquela situação, embora a parva de minha irmã tivesse idade de ser minha mãe, ela precisava ser conduzida por mim.

Os policiais ajudaram-na a levantar e a convenceram de ir comigo para casa, embora ela tenha resistido. E eles num tom de riso disseram: “Desta vez não vais presa, mas numa próxima não precisarás pedir! E vês se vais logo dormir enquanto a gente não se arrepende!” Consegui arrastá-la com muito esforço. E ao voltar, pus-me a observar e a refletir: o que leva uma pessoa a chegar a tudo isso? A quase entrar em coma alcoólico? Há motivos que justifiquem tamanho declínio de uma pessoa? E se ali, ao invés do sossego, da vila pacata que é Famalicão, fosse uma periferia de uma capital do Brasil, o que teria acontecido a esta gaja, que bebeu tanto, a ponto de sair de sua órbita, de sua sanidade?

E se a vida anda numa corda bamba e se ficamos a salvos e por um triz, ponho-me a crer que, embora tamanha ferocidade e frieza do mundo em que vivemos, ainda há seres de boa vontade, dispostos a querer nos dar a mão.

Nila Poeta
Enviado por Nila Poeta em 06/01/2017
Código do texto: T5874256
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