Sobre a Vida...
     
"Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morra esteja vivo, quem quase vive já morreu".
(Sarah Westphal)


     Dia destes, estava caminhando pela “Avenida Dr. Antoninho”, num final de tarde, acometido por uma vontade louca de praticar alguma atividade física, quando encontrei, na mesma empreitada, o velho João, amigo de tempos idos, mocidade revoltada, adolescência rebelde e tantos outros adjetivos que ostentávamos com orgulho nos anos 80, aliás, anos de ouro que deixaram muitas saudades e grandes histórias.

     Logo que me viu, acenou de pronto e caminhou em minha direção com um sorriso largo, estendendo-me a mão gorda e puxando-me para o forte abraço de urso, característica do velho amigo desde os já citados tempos idos.

     Começamos a falar da vida, da cidade, dos amores, dos ex-amores, dos filhos, enquanto caminhávamos pelas calçadas vermelhas que se transformaram numa pista de caminhada improvisada em nossa mais importante avenida. João sorria com entusiasmo contando-me das últimas aventuras, até que uma frase sua me chamou a atenção. Disse: “É, caro amigo, quem achava que a gente não iria morrer um dia, hein? ”.

     Olhei-o atônito, tentando entender o que significava aquela colocação, num momento em que estávamos tão felizes, nos lembrando das coisas pelas quais havíamos passado em nossa não tão distante juventude, afinal, ter 45 anos não é ser tão velho assim. Perguntei-lhe o porquê daquela frase, no que estava pensando, ou se estava passando por algum problema. Ele parou um instante, olhou-me sorrindo e continuou, dizendo: “- Ah, a gente morreu, cara. Somente nos esquecemos de deitar no caixão!”. Respondi de pronto: “- Nada disso, cara pálida. Você morreu, eu não! Não me leve junto para o além antes da minha hora. Viver por aqui tá bom demais, e não curto muito a idéia de que daqui a pouco poderei estar comendo grama pela raiz num lugar frio e escuro!”.

     João abriu seu largo sorriso e emendou: “- Pois vou te fazer algumas perguntas e quero que me responda seriamente e com sinceridade, ok?”. Acenei afirmativamente, esperando a constatação de sua tese absurda. João limpou a garganta brevemente e fez sua primeira pergunta: “- Há quanto tempo você deixou de sair de casa despreocupadamente, sem se importar com o trabalho do dia seguinte ou com as dívidas que tem que pagar, ou ainda, com a segurança de sua casa e suas coisas?”. Parei, pensei um pouco e respondi: “- Ah, já faz alguns anos, mas não me estresso com isso não!”.

     João sorriu, baixou os olhos, ficou um tempo parado e emendou: “- Há quanto tempo você não brinca com sua filhinha, despreocupadamente, sem se importar com o passar das horas e com julgamentos alheios?”. Olhei-o sem entender, mas respondi: “- Ah, de vez em quando a gente brinca, mas não consigo desligar de muita coisa. Sabe como é, né? A gente tem muitas responsabilidades!”.

     João coçou o queixo e continuou: “- Há quanto tempo você não toma um delicioso banho de cachoeira ao lado de uma pessoa que goste muito?”. Nossa, aquela pergunta caiu como uma bomba, pois me lembrei de meus dois casamentos, meus ex-amores, num misto de emoções que eu não queria voltar a reviver. Respondi quase balbuciando: “- Ah, faz tempo, muito tempo!”. Fiquei até com vergonha de confessar que nunca tomara banho de cachoeira nem só, muito menos acompanhado.

     A última pergunta veio como um míssil: “- Pra terminar, há quanto tempo você não pisa na grama molhada sem se importar com uma gripe?”. Baixei os olhos e duas lágrimas denunciaram minha emoção. Lembrei-me de quando era criança, de quando corria despreocupadamente pela rua de terra, descalço, esperando a chuva que vinha e me encharcava até a alma. Lembrei-me do bolinho de chuva da Dona Lourdes nos dias de tempo ruim, ao som chiado de um radinho de pilha ouvindo o programa do Eli Correa. Lembrei-me da Sessão da Tarde, dos desenhos animados da TV Criança, dos clipes de rock do Som Pop e de tantas outras boas lembranças que passaram como flash em minha cabeça.

     Não consegui responder. Assim, meu amigo me abraçou e o silencio constatou sua afirmação. Percebi ali, naquela caminhada e naquele encontro, que um homem não morre quando fecha os olhos para sempre, mas sim quando deixa de viver as coisas que realmente lhe importaram um dia.