Sobre a Práxis Educativa...
      
     Dia destes, revisitando minhas lembranças mais intensas e lindas, lembrei-me do primeiro dia em que entrei numa sala de aula, há exatos 28 anos. Foi numa classe multisseriada, num sítio que ficava próximo à cidade de Itu. Havia 4 fileiras de carteiras, com uns 3 ou 4 alunos em cada fileira, correspondendo à primeira, segunda, terceira e quarta séries. Era difícil imaginar que alguma criança dali sairia sabendo alguma coisa. Afinal, alfabetizar, assobiar e chupar cana, tudo ao mesmo tempo, era impossível.

     Começava a aula bem cedinho, ali pelas 7 horas. Cheiro de Orvalho, cerração... Dava aula até 9 horas e depois chamava dois ajudantes pra cozinha, preparar a merenda, que não tinha muito segredo, afinal, era um saco de pó, à base de arroz, que fazia um mingau grosso, de sustância, e que a criançada comia até a barriga doer. Depois, alguns ficavam no pátio improvisado, de chão batido, que virava um lamaçal em dia de chuva, jogando bola ou brincando com uma rodinha de borracha que era empurrada por um grosso fio de arame duro dobrado na ponta. Era um brinquedo simples, mas que entretinha por horas.

     Percebia que os olhares daquelas crianças só viam tratores e mulas no horizonte que se estendia à sua frente. Nada além! Cada retorno para a casa, era a certeza de mais uma tarde de trabalho duro na roça, com os pais que, zelosos, procuravam não deixar a criança sozinha, por isso as levavam consigo para que desde cedo aprendessem os segredos da mãe terra.

     Lembro-me de um dia em que um deles levou um saco de batatas para que tivéssemos um almoço especial. Pra eles seria festa, comer batatas em grupo. Pra mim, o tormento de descascar e preparar tudo. Mas o fiz, e foi bom!

     Enquanto brincavam, eu me sentava embaixo de uma árvore tranquilamente e abria um livro do mestre Paulo Freire, “A Pedagogia do Oprimido”, onde devorava com voracidade cada página, e nutria-me mais e mais com a vontade de ser um bom educador para, dessa forma, tentar mostrar outros horizontes além de mulas, tratores e enxadas.

     Sentia-me fortalecido em cada palavra, e elevando os olhos vez ou outra, vislumbrava meus pequenos oprimidos que corriam atrás de uma bola ou brincavam com suas rodinhas de borracha empurradas pelo arame duro e torcido. Logo chegava meio dia, e todos pegavam suas mochilas, se despediam de mim e voltavam para suas casas felizes, realizados, encantados com a sinergia produzida em mais uma manhã em que a pobreza de uma sala caindo aos pedaços contrastava com os desenhos bonitos que eu fazia na lousa, dando significado às letrinhas que existiam naquela lata de óleo ou no saco de arroz que encontravam nos armários de suas cozinhas.

     Sinto saudades disso tudo, principalmente neste momento em que nos afogamos nessa modernidade líquida, onde as relações pessoais, sociais, profissionais e emocionais são tão fluídas, e escorrem pelos nossos dedos com uma rapidez inigualável, impedindo-nos de nos comprometer. É o prazer imediato, absoluto e instantâneo, que norteia uma sociedade capitalista e consumista, pautando-se pela tendência inercial de caminhar sem nenhum objetivo.

     Fico imaginando o que terá acontecido com meus pequenos oprimidos. Talvez hoje sejam pais e mães de família que se sustentam pelos arados e mulas que viam no horizonte, mas que sorriem, agradecendo a oportunidade de um dia terem olhado pelas janelas que se abriam naquele quadro negro, naquela lousa trincada, que dava vida e significado às coisas.

     Como é bom ensinar, abrir portas e janelas... Nas palavras de Paulo Freire: “Ensinar é uma especificidade humana, que exige segurança, competência profissional e o mais importante, generosidade”.