[Uma loucura e um pesadelo]

Estou andando pelas calçadas da grande cidade. O dia está claro e o calor me oprime: começo a pensar se somos apenas animais vendo a vida ser derretida pelo Sol e pelo Tempo. Meus pensamentos são profundos e confusos: formam linhas que se embaraçam facilmente. A Solidão está sempre ao meu lado, embora nada fale para mim: ela respeita o meu silêncio. Tudo está muito ordinário, pequeno e sem sentido, como deve ser, até que eu me deparo com algo que um dia já foi homem. Ele está muito agitado e se movimenta de forma aleatória, entrando em minha frente, tornando o encontrão inevitável. Ele me olha como se procurasse por uma saída em minhas retinas, mantendo no rosto uma expressão que eu, na minha ignorância, não consigo discernir qual é. Ele me parece teso, mas não sei dizer se é porque ele acha que sou um predador ou uma presa. Suas roupas imundas, seu cabelo desgrenhado, seu fedor terrível me lembram de que ele é animal perdido na selva de pedra desde há muito: um honorável derrotado na vida, por honra própria ou alheia (isto não é importante no momento). Fico olhando para ele como se fosse meu captor — segundos que passam como horas para mim e, talvez, talvez, para ele também. Aquele projeto fracassado de gente começa a falar coisas que eu não entendo, muito mais agitado do que antes, rindo e chorando ao mesmo tempo. Por que continuo a presenciar tal espetáculo? Por que permaneço de pé frente a ele, como se eu quisesse dizer algo de importante e não conseguisse? Um frio enorme me banha e invade a minha alma. Meu cérebro tenta me tirar dali e me levar a um lugar seguro, mas não consegue no começo: a miséria é amarga e terrível, mas a dos outros é doce e, às vezes, até agradável. A verdade é terrível, mas é a única coisa de bom que tenho, e eu, junto ao meu egoísmo e à minha humanidade, irmãos siameses, seguimos de volta à nossa vida ordinária.

“Está tudo bem, querido?”, pergunta-me a Solidão, sabendo o que se passava dentro de mim e já antevendo que aquilo só iria piorar. “Sim, está.”, respondo, com a falha na voz típica de quem não acredita no que fala. Permanecemos calados por alguns instantes, mas eis que Maxwell Tavares chega e se senta ao meu lado, para o desespero máximo de minha amada, que me abraça mais forte do que nunca. Ele sorri e, tão rápido quanto chegou, apodera-se do meu ouvido para que eu possa ouvir o que não pode ser ignorado. “Por que está com medo daquele mendigo? É por que tem medo de se tornar um deles? É por que tem medo de que as pessoas percebam a sua loucura e, no fim, você acabe como um lunático internado num hospício, desperdiçando dinheiro público, assim como você está fazendo agora? É por que quer ignorar que esta é a consequência lógica da sua vida? É por que o fracasso sempre te acompanha e você, Marcos, sabe que aquele homem representa a soma de todos os fracassos? É por que tem medo de viver e morrer aprisionado dentro de sua própria mente? É por que acreditou que podia ter um futuro diferente e melhor, preferindo se iludir e achar que tinha capacidades para poder construí-lo, quando, na verdade, não poderia? É por que decepcionou aqueles que já se atreveram a confiar nos seus ‘potenciais’ ilusórios? É por que, enfim, acreditou um dia que era grande e que tinha algum talento, preferindo acreditar em tal mentira tão infantil em vez de olhar a realidade e encará-la como um adulto?! É por isso que você sente esse frio na espinha? É por isso que sente sua cabeça dolorida, rodando e rodando, numa tentativa ridícula de não me encarar, já que o seu subconsciente desprezível deseja que você continue se iludindo?! É por isso?!”.

Encaro as investidas de Maxwell com uma energia que vai se dissipando até não existir mais nada senão tristeza e sofrimento. Tento controlar minhas lágrimas, mas meus olhos não me obedecem. Tento ser forte, mas não posso criar forças do nada. Tento resistir àquilo com a resignação típica de quem sabe que o inimigo está totalmente certo e não pode ser rebatido com racionalidade. Contudo, sinto o peso do vazio sobre os meus ombros e, quando menos espero, grito, sem ter total controle sobre isto: “Cale a boca!”. Estou atordoado e preciso tomar um pouco de ar: saio rapidamente do vagão do metrô onde eu estava, lutando bravamente para vencer cada corpo inerte que está entre mim e a liberdade ilusória do lado de fora. Quando consigo, apenas fico arfando, tentando ignorar os olhares dos demais para evitar um problema ainda maior, sem sucesso. Não tenho mais capacidade de controlar o choro, bem como a Solidão não consegue me acalmar como antes. Maxwell, impávido, fica do meu lado e me diz, bem baixo para que ninguém mais possa ouvir, bem alto para que eu não possa ignorá-lo: “Seu pesadelo está se tornando real. É bom começar a gostar de cachorros e a parar de reclamar da comida, porque você necessita dar apenas mais um passo em falso para cair na desgraça e acabar na sarjeta. Comece a rezar para que os garotos de bem não te peguem. Ah, lembrei! Você é ateu!”, e ele ri, com a certeza de que o meu infortúnio só não é maior que a ignorância humana. Quando ele se vai, penso, ainda que de relance, nos trilhos e na minha destruição. Malditas portas automáticas de proteção!

Marcos Paulo Barbosa da Silva
Enviado por Marcos Paulo Barbosa da Silva em 12/02/2017
Reeditado em 16/02/2017
Código do texto: T5910061
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