[Fé na humanidade]

Andando por uma estação ordinária de metrô, posso ouvir algumas vozes exaltadas. Assusto-me: penso que é comigo e, durante um breve momento, minhas pernas congelam, já que o meu pavor lhes tira a energia necessária para executar algo mais produtivo. Contudo, felizmente, não é comigo: é só uma multidão cercando uma pessoa qualquer que eu desconheço. Eles gritam palavras de ordem, muitas delas impublicáveis, mas todas mostrando um único fito: o desejo gigantesco de destruir uma vida. Alguns têm suas bocas literalmente espumando: espancar alguém até a morte deve ser, pelo menos para eles, uma forma de diversão bastante boa. Os policiais pegam o indivíduo pelo braço e o carregam para fora do recinto, gerando protestos: a multidão deseja ver e cheirar sangue para depois se banhar dele, visto que é isto o que a excita. Alguns pontapés são dados naquele homem, algo que, pelo menos na minha visão, não parece abalar de alguma forma os soldados em serviço: talvez estes saibam que terão a sua oportunidade de fazer o que a multidão não pode, pelo menos não escancaradamente, ou talvez tais soldados sejam apenas ótimos seguidores de regras. Após um tempo, o indivíduo é levado para longe da minha vista e eu, então, posso voltar à minha meditação tradicional.

“Está se sentindo bem, querido?”, pergunta-me a Solidão, com um sorriso muito amável de esposa, amante e confidente. “Não. Não muito. Estou um tanto abalado. Quero voltar o mais rápido possível para casa. Não me sinto seguro por aqui.”, respondo, com a mente muito bagunçada e o corpo trêmulo, sentindo-me esgotado por me ter exposto à barbárie cotidiana. “Por quê?”, ela me indaga, muito curiosa, mas muito inteligente: já sabe a resposta, mas quer que eu medite um pouco mais sobre a questão. “Tenho medo de que aquelas pessoas tão amáveis venham para cá e decidam fazer em mim o que elas não puderam fazer naquele outro. Considerando que somos fisicamente parecidos, a probabilidade de isto acontecer não é muito baixa.”, sinto-me oprimido e tento andar o mais rápido possível, o máximo que o meu corpo relaxado e rechonchudo me permite. “Elas te linchariam por qual razão, querido?”, ela parece querer fazer de tudo para que eu possa tirar algo de positivo daquela brutalidade. “Não sei. Quando pessoas idiotas se juntam e quando o ódio impera, qualquer coisa pode acontecer, e normalmente não é algo bom. Considerando que eu sou tímido e que, se alguém me acusar de alguma coisa, eu não conseguirei provar a ninguém a minha inocência, eu seria uma vítima indefesa. Eu sou ‘estranho’ para elas: todas as minhas atitudes são suspeitas. Algo de que tenho muito medo é de ser acusado injustamente: não falo bem, você sabe disto, e eu não conseguiria convencer a ninguém da minha verdade. Às vezes, ser tímido e antissocial é muito ruim.”, concluo, com uma pitada de decepção típica de quem sabe que não pode mudar a sua própria essência. “E por que você não o defendeu? Se você acha que linchamentos são errados, por que não levantou sua voz? Se eles pegassem aquele homem e começassem a espancá-lo, você simplesmente fugiria?”, a Solidão fica um tanto abismada com a minha reação àquilo tudo: existem algumas verdades que são difíceis de serem engolidas. Aliás, a maioria delas é intragável. “Sim, eu fugiria. Se eu protestasse, provavelmente seria morto junto com ele. Além disso, tenho consciência de que não sou capaz de mudar a essência humana e de que aqueles indivíduos estavam apenas sendo isto: humanos. Vejo muita barbárie, não sou um completo alienado, e eu fico muito triste e até nervoso com muitos fatos e notícias que me chegam à mão. Contudo, se formos parar para pensar, assassinatos, estupros, justiçamentos, isto tudo sempre aconteceu e qualquer um que estude História sabe disto. Nunca fomos capazes de mudar tal fato: o máximo que fazemos é diminuir o problema. Não o resolvemos antes, não o resolvemos agora e nem nunca o resolveremos no futuro. A humanidade está condenada ao ódio e à brutalidade, porque é disto que somos feitos: vi em certo lugar que o que une mais fortemente os humanos é o ódio e medo ao que lhe é diferente, que o faz querer defender o que ele conhece. A irracionalidade, os sentimentos mesquinhos e a sanha assassina são naturais em nós, e é claro que eu me incluo nisto. Já senti vontade de matar pessoas que eu não conhecia e já senti vontade também de matar pessoas com as quais eu mantinha contato. As explicações são muito variadas e as justificativas mais ainda: eu, como qualquer ser humano, preciso de uma explicação minimamente ética que justifique os meus atos, por mais que ela seja irracional. O amor, querida, é algo muito bonito que os humanos sentem, mas também somos feitos de sentimentos ruins e quase sempre eles falam mais alto do que os bons. Eu, Solidão, já tive esperança de que tudo fosse mudar, que as pessoas iriam se entender e aceitar mais umas às outras e que a violência se tornaria algo pouco frequente. Enfim, já tive fé na humanidade. Hoje, eu sei que a expressão ‘fé na humanidade’ é vazia: a nossa humanidade consiste em odiarmos e matarmos outras pessoas, em fazer mal a desconhecidos e a procurar explicações idiotas para tais atos. No sentido trivial da expressão, ter ‘fé na humanidade’ é uma grandessíssima perda de tempo!”. E, após esta longa explicação, posso entrar tranquilo no ônibus com minha consciência limpa e tranquila, enquanto a Solidão me namora com a expressão típica de quem teve suas utopias destruídas.

Marcos Paulo Barbosa da Silva
Enviado por Marcos Paulo Barbosa da Silva em 12/02/2017
Código do texto: T5910672
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