Café com Getúlio Vargas.

Há alguns anos ganhei de presente de uma vizinha uma xícara de café. Xícara de lembrança quando dos tempos do Instituto Brasileiro do Café.

A mesma é branca, com um ramo vicejante do fruto já vermelho e mesmo fazendo parceria com o cabo. No pires, ao centro, aparece a sigla – IBC – e, nas bordas, café Du Brésil, Brasilianischer kaffee, caffé Del Brasile Brazilian coffee.

Em 1952, no segundo governo Vagas, foi criado o IBC com a missão exclusiva de cuidar do café, definir a política para o setor, coordenar e controlar estratégias, desde a produção até a comercialização interna e externa. Ao mesmo tempo, o IBC também ofereceu assistência técnica e econômica à cafeicultura e promoveu estudos e pesquisas em prol da cultura e da economia cafeeira.

Assim como a Petrobras, o IBC, o Instituto o Açúcar e do Álcool, a Vale do Rio Doce foram criadas com propostas nacionalistas da Era Vargas para que o país ganhasse autonomia, espaço maior e mais consistente no mercado internacional, além do progresso que haveria de sustentar nossa gente, a criação de centenas de novos empregos – tempos de urbanização, progresso e esperança, muita esperança.

Na minha adolescência herdei inspiração desse nacionalismo. Quando nasci, fazia quatro anos do desencarne de Getúlio, mas confesso que muito me apaixonei pelas causas do país.

Evidente que fui crítica feroz da sua ditadura do Estado Novo, do emprego da tortura, por manter à frente de todos os algozes uma figura execrável como Filinto Muller. Absurdo lembrar sem me emocionar com dor e muita indignação a deportação de Olga Benário para a Alemanha nazista. Você foi cruel demais, Getúlio. Te odiei muitas vezes.

Apesar de todos os horrores, não há desculpa para nenhum deles – há de se dizer que esse governo trouxe avanços. As leis trabalhistas vieram dali depois de lutas incontestáveis da classe trabalhadora. E permanecem. Permanecerão?

Resolvi pegar a pequena xícara da cristaleira. Sim, ela está guardada no meio de objetos de grande valor emocional para mim. O último presente da minha avó, o litro de leite Paulista dos anos 70, vários presentes de casamento vindos de pessoas especiais, belíssimas e raras.

Fiz um café – resolvi fazer o centenário café Moka, que trago religiosamente de São Paulo a cada visita à minha terra natal.

Solitária, nas minhas saudades e angústias, resolvi tomar o café Moka na “xícara do Getúlio”, meio que conversando com ele, desabafando sobre a tristeza desse nosso momento de obscurantismo e medievalismo.

Peguei um pedaço de panetone Visconti comprado na promoção de janeiro, e era como se eu falasse para o “pai dos pobres” da minha dor, do meu desencanto, da raiva contida em ter que passar pelo segundo golpe de Estado na minha vida.

O Brasil entregue às baratas. De desatinos aos borbotões, com assaltantes a bocas e corações armados no poder a massacrar a classe trabalhadora. E com projeções de, no mínimo, esfolar a nação por 20 anos. Claro que 20 anos é uma pura referência em relação à PEC da maldade. Quem congela verbas da educação e da saúde é para emburrecer o povo por décadas sem fim e para matar também.

E vejo aquela parcela imensa da sociedade que saiu às ruas pedindo golpe, batendo panelas, rindo, falando “êê ê ê”, tirando selfies às dezenas ou mais... bem, ela está caladíssima, meio como Conceição - “ninguém sabe, ninguém viu”. E nem assume responsabilidades por ter sido esteio desse descalabro, fugindo do compromisso por ter levado o país a uma situação de esgoto a céu aberto. Isso mesmo – cloaca máxima, como era conhecida a antiga rede de esgotos do Império romano.

Há de se pensar na nação como gente irmanada nas conquistas e benefícios trazidos por anos a fio de trabalho. E honra aos antepassados que nem tinham direito a descanso digno. Nem isso.

Percebi aquelas duas mulheres (e justo mulheres!) a desfilar cartazes contra Lula em frente ao hospital em que dona Marisa Letícia estava internada. Sabe por que elas estavam lá, se exibindo? Porque se esqueceram que só têm tempo livre porque, no passado, sindicalistas, socialistas, cristãos lutaram pela redução da jornada de trabalho, pela aposentadoria (eu não sei se elas já eram aposentadas),pela dignidade. Elas se esqueceram de tudo. Justo duas mulheres que, certamente, procriam, ensinam e fazem refletir. Parece que elas devem ter ensinado a refletir sobre a escassez de gratidão, de memória e de respeito à dor alheia. Quem sabe pariram indivíduos apenas capazes de olhar para os seus próprios umbigos com aquele riso sarcástico de “dane-se o mundo”.

Então, eu conversava com Getúlio e disse a ele que existiu um presidente muito melhor, muito mais digno e que nunca mandou torturar, deportar ou matar ninguém. Antes, se preocupou em dividir renda, criar universidades não apenas para as elites, mas que pobres e pretos também pudessem se sentar naqueles bancos da academia.

E hoje somos entregues aos ratos.

Perdemos. E dizem que mais escuro que a meia noite não fica. Quero creditar.

Terminei o café, lavei e guardei a xícara de volta na cristaleira. Quem sabe, numa outra conversa, eu possa dizer que o bom senso vingou, que alguma vergonha na cara apareceu, que juízes com camisas pretas à la Mussolini e fazendo biquinho de mau perceberam que um dia pagarão pelo que fazem e o melhor é pensar no aqui e agora, no próximo, na construção de um projeto de nação que quase houve, na vida que insiste em florescer, na primavera que não se cansa de trazer sabiás para cantar. Cantar para todos.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 13/02/2017
Reeditado em 23/02/2017
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