[O macaco nu dança]

Numa terrível noite de verão, em que o calor destrói o sono e deixa somente o cansaço e a frustração, acordo muito assustado e terrificado: tive um sonho muito ruim. A Solidão me olha com um ar muito feliz e romântico, como se a minha expressão de alguma forma a alegrasse. “Teve um pesadelo, querido?”, ela me pergunta, com um sorriso que eu não consigo distinguir se é de amante ou de inimiga. Na dúvida, fico com a primeira opção. “Sim. Não foi exatamente um pesadelo, mas... Foi um sonho estranho. Muito louco!”, respondo, ainda tentando me recompor, procurando no vazio alguma tábua que seja capaz de me salvar. Ela, por sua vez, fica compadecida de mim e me abraça para que, quem sabe?, o calor de seu corpo possa vencer as minhas dúvidas. Não tem o efeito desejado. “Conte-me o que sonhou, se quiser.”, ela me diz, com um tom muito doce na voz e um sorriso que já tenho certeza que é sincero. Após respirar fundo um pouco, decido fazer o meu relato.

“Estava numa espécie de realidade paralela, não muito diferente da nossa. No começo, eu vi algumas pessoas num café elegante protestando contra o governo daquele lugar esquisito, colocando palavras de ordem em copinhos de papel e acreditando que isto mudaria o mundo. Algumas outras tiravam fotos de si mesmas, com seus ternos e vestidos caros, sorrindo, ficando sérios e fazendo caretas para chamar a atenção de outros indivíduos ao redor daquele mundo estranhíssimo. As que não eram atraentes tiravam fotos da comida. De repente, algumas pessoas apareceram, literalmente do nada, e falavam coisas bonitas, mas com um tom de falsidade que até eu conseguia perceber. Elas logo desapareciam e os que restavam ficavam tristes, fazendo de tudo para que a aparição ocorresse de novo e que os elogios fossem ainda mais bonitos e mais falsos do que antes. Cansado daquilo, decido sair: as ruas são esquisitas, as casas são feias, há muita gente transitando, de uma forma muito caótica. Em poucos segundos, eu vi uma mulher nua: um pouco depois, percebi que eram muitas. Ela me disse que eu poderia fazer o que quisesse com o seu corpo, desde que eu comprasse algo que não lembro o que era. Percebi, com um pouco de esforço, que ela não tinha existência física: era um embuste. Aliás, nenhuma delas realmente existia naquela realidade: estava excitado no começo, mas perdi o tesão quando percebi que o prazer era irreal e fugaz. Espere um momento: preciso de um pouco mais de ar.”, estou arfando para conseguir dizer estas simplórias palavras: quero contar a minha história de forma muito melhor, mas não me é possível. Depois de alguns brevíssimos segundos, volto à minha descrição.

“Assim que saí de perto das mulheres enganadoras, vi que vários papéis voavam em direção ao meu rosto: todos eles tinham algo escrito, e até tentei lê-los, mas o seu volume era tão grande que não apenas eu não conseguia processar mais informação alguma como também estava me afogando nelas: navegar é bom só quando se sabe nadar, como é óbvio. Apenas com muito esforço consegui me livrar de tudo aquilo e pude voltar ao ‘normal’, podendo ver novamente a rua. E o que eu vi? Algumas pessoas que estavam com o rosto encoberto, insultando alguns transeuntes que estavam com a cara desnuda, gritando palavras de ordem que, quando pude entender com mais clareza, percebi que eram imbecilidades no seu sentido mais puro. Livrando-me deles, mas não dos seus impropérios, pude chegar a algumas pessoas que estavam dentro de grandes bolhas de vidro, discutindo e insultando umas às outras e tentando provar que sabiam mais sobre a realidade do que o colega. Contudo, foi fácil perceber que ninguém, exceto eu e mais alguns, conseguia enxergar o que havia à volta: todos os demais viam apenas os seus próprios reflexos, apesar de gritarem que eram os outros que não conseguiam olhar para muito além do seu próprio umbigo. Depois dessa travessia tão insidiosa, pude ver alguns prédios com imagens nas janelas, formando um mosaico que revelava o rosto de alguém. Muitas pessoas e robôs saíam e entravam de tais edificações: era engraçado como elas caíam enquanto outras eram construídas e, muito mais rápido do que foi a construção, estas também caíam. Pude ver, mais uma vez, pessoas tirando fotos de si mesmas na esperança de atrair seguidores que sumiriam num milésimo de segundo; outras que faziam um discurso no meio da multidão e que não eram ouvidas; mais algumas que tiravam a roupa para tentar atrair a atenção, gerando discussões entre aqueles que estavam em suas bolhas e insultos dos que nunca dão a cara à tapa; pude ver, enfim, tudo ser edificado e destruído com uma rapidez surpreendente enquanto que a multidão caminhava claudicante, como se não soubesse que rumo tomar. Acabei me lembrando de uma música que ouvi recentemente e acho que foi por isso que todos aqueles indivíduos estranhíssimos começaram a dançar como loucos na minha frente. Até um macaco nu apareceu! Dançando, ainda por cima. Foi aí que eu acordei.”.

Após este longo relato, fecho os olhos para tentar voltar a dormir e, antes disso, digo à minha eterna namorada: “Ainda bem que foi só um sonho! Felizmente, voltei à realidade!”. Ela, muito graciosa, apenas sorri, talvez um tanto compadecida do meu karma ocidental.

Marcos Paulo Barbosa da Silva
Enviado por Marcos Paulo Barbosa da Silva em 14/02/2017
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