[Um beijo]

Estou sentado num banco qualquer do metrô, com os olhos perdidos no vazio, mergulhado em pensamentos tão difusos quanto complexos, que tento clarear e simplificar, sem lograr êxito, contudo. É um dia ordinário: as mesmas pessoas indo para cá e para lá, vivendo suas vidas, buscando algo que talvez elas mesmas sequer saibam o que é, mas ainda assim mantendo a esperança de que o amanhã será melhor do que hoje. Tento, contudo, não dar importância àquilo: passo a ler algum texto que creio ser importante e que, de qualquer forma, é premente. Contudo, em um dos momentos em que descanso as vistas, vejo uma cena que me chama a atenção: dois homens estão se beijando. É algo um tanto rápido, mas não sei dizer quanto tempo aquilo durou. A cena passou celeremente pelos meus olhos, mas não pela minha mente: fico pensando no beijo o tempo todo, de tal forma que a leitura não me é mais possível. Todo o mais fica suspenso, já que não consigo mais me concentrar em coisa alguma a não ser naquele singelo ato: os pequenos toques, mostrando que o amor, esta coisa estranha que não conheço, reside nas menores ações, que são as maiores, todavia; os lábios se cruzando, transformando permanentemente dois seres em um só, ainda que isto dure só alguns milésimos de segundo; o sorriso final típico de quem é consciente de que o paraíso está dentro de si mesmo, ainda que ele esteja em outra pessoa; tudo isto vem à minha mente, tornando a minha confusão ainda maior. Só há uma dúvida que é certa: como um simples e mero beijo...

“... pode incomodar tanto as pessoas? Sei o que está pensando, querido. Mas por que pensa assim? O que realmente te incomoda?”, intervém a Solidão, sempre ao meu lado, mas que está agachada porque o outro espaço do assento já está ocupado. “Não sei dizer. Ah!... Talvez seja um schadenfreude às avessas? Talvez eu esteja triste porque eles estavam felizes? Não sei dizer... Você sabe que eu, por mais que eu saiba e diga aos quatro ventos o quanto as relações sociais, especialmente as amorosas, são ruins e uma grande perda de tempo, continuo ansiando muito por tê-las. São as contradições inerentes ao ser humano, você sabe disso. Então... Posso estar com inveja deles. Mas... Sinto que não é só isso.”, e interrompo a fala, externando, ainda que de forma involuntária, que há muitas questões mal resolvidas em mim. A Solidão me observa em silêncio, sabendo que é necessário um tempo para que verdades difíceis possam ser encaradas. “Eu sei que não sou homossexual, apesar de não ter o total controle sobre os meus desejos eróticos, como, aliás, é o trivial. Então, a explicação típica de que estou tentando negar o que realmente sou por ter medo de assumi-lo não se aplica neste caso. Portanto, o que seria? Eu também não me sinto muito bem quando um homem e uma mulher se beijam na minha frente. Talvez o meu mal-estar seja menor neste caso por uma questão de costume: considerando o país em que vivo, ver casais gays nas ruas e se beijando livremente é algo raro e até mesmo perigoso para eles. Não é uma questão moral: não sou religioso, você sabe disto, e qualquer tentativa de imoralizar a homossexualidade não resiste ao crivo de uma análise racional minimamente bem feita. Assim sendo, não há razões racionais para eu ser homofóbico. Então... Acho que o motivo profundo é uma inveja oriunda da vontade ainda mais profunda de estar com alguém que realmente existe, com todo o perdão que devo a ti, Solidão, algo que eu sei que é irrealizável, mas que ainda assim eu tenho, talvez porque todo ser humano a tem. Acho que é isso!”, finalmente eu concluo, com as mãos trêmulas e molhadas que não são de quem mente e tem consciência de tal ato, mas sim de alguém que assume algo muito difícil. A minha amada, felizmente, compreende isto.

“E como um simples e mero beijo pode incomodar tantas pessoas? Você não é alguém normal, Marcos, então não se inclua na pergunta. Por que os outros se incomodam?”, retoma a minha eterna namorada, que me força a extrair conhecimento nem que eu tenha um colapso nervoso em decorrência de tal busca. Ela faz isto por bem: sabe que eu preciso de respostas às minhas questões mais profundas. “Há três motivos. O primeiro é a moral: elas podem achar que a homossexualidade é errada e vão utilizar argumentos morais, muitas vezes e quase sempre religiosos, para tentar justificar isto, por mais que eles não sobrevivam a uma análise racional minimamente bem feita, como eu disse antes. O segundo é uma negação de si mesmo através da negação do outro: ou seja, você tenta eliminar o homossexual para tentar eliminar, ainda que de forma muito ineficiente, o medo de ser um deles. O terceiro é o meu: a inveja da felicidade alheia oriunda da frustração com a sua própria vida. Neste caso, não é homofobia stricto sensu: é uma repulsa ao ato do beijo, e não a quem o faz. De qualquer forma, recriminar um gesto tão bonito e, muitas vezes, mas nem sempre, inocente, revela uma pequenez gigante. E, sim, assumo esta pequenez em mim, por mais que isto me seja difícil. Enfim... É algo que tenho que corrigir, embora eu seja consciente de que as minhas tentativas anteriores não lograram êxito. Talvez a vida seja só uma sucessão de tentativas frustradas de modificar as nossas imperfeições. Talvez...”, mas não posso continuar divagando em meus pensamentos violentos como o rio após a forte chuva, já que chego à minha estação. Deixo o amor aos amantes e o ódio aos homofóbicos: a realidade urge e não posso rejeitar a chamada.

Marcos Paulo Barbosa da Silva
Enviado por Marcos Paulo Barbosa da Silva em 15/02/2017
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