[As chamas da mudança]

Observo, da minha doce e querida janela, o mundo passar e o tempo derreter diante dos meus olhos: transeuntes que andam de um lado para outro, buscando um sentido para os seus passos e para suas vidas; carros que carregam todo o estresse e preocupação que abundam na cidade grande; o barulho de tudo isto se fundindo numa caótica e tenebrosa sinfonia urbana. Nada de anormal: as mesmas pessoas, os mesmos veículos, o mesmo calor, a mesma sensação de não pertencimento a tudo o que está à minha frente. Contudo, algo passa a me chamar a atenção: uma mancha preta e cinza macula o céu poluído. O que está havendo? Uso um pouco da inteligência que um dia julguei ser grande e noto que aquilo sai de uma pequenina e pobre favela que fica a um ou dois quilômetros de minha morada. Após alguns minutos, já percebo que não sou só eu quem observa aquilo: uma mirrada multidão se aglomera para apreciar o espetáculo. Falam coisas que não consigo compreender, mas tento não prestar atenção à conversa: fico admirando, quieto como sempre, a destruição tão próxima e tão distante de mim.

“Pelo barulho, parece que já chamaram os bombeiros. E, pelo visto, não são poucos.”, diz-me a Solidão, que se aconchega em mim para também tomar parte daquele divertimento macabro. “Você sabe tão bem quanto eu de onde vêm as chamas. E é de partir o coração saber que tantas pessoas que têm pouco ou quase nada perderam ou perderão o que ainda lhes resta. Sei que elas estão ocupando um terreno particular e que as construções são precárias e, se os famigerados ‘gatos’ não foram os culpados por terem gerado o incêndio, a infraestrutura é a responsável por propagá-la com tanta violência e rapidez. De qualquer forma, eu fico pensando: estas pessoas perderam ou perderão o pouco que elas tinham. O que farão amanhã de manhã? Ou melhor: o que farão hoje à noite? Poderiam ir para a casa de algum familiar, mas e quem não o tem? E quem tem familiares que estão muito distantes? E quem tem dificuldades para se locomover, ou tem crianças pequenas? O que farão? Infelizmente, não sei a resposta. Ou melhor: sei, e ela não é boa. Passarão um bom tempo nas ruas, a não ser que alguém se compadeça delas e decida dar algum conforto. Mas, hoje em dia, quem é que faz isto? Muitos que dizem praticar o bem só o fazem para barganhar um lugar num céu que mal sabemos se existe de fato, ou simplesmente para parecer bom aos seus amigos e aos desconhecidos que tanto julgam e pouco fazem. Sei que existem pessoas que realmente querem fazer o bem, pessoas que realmente merecem o título de ‘homens’ e ‘mulheres de bem’, mas quantos são assim? Quantos, ao saber o que está acontecendo, não dirão que a culpa disto é das vítimas, e que não devemos ajudá-las porque isto seria premiar o fracasso? Quantos, ao saber que o terreno é invadido e que provavelmente seria desocupado com tanto ou mais sofrimento do que o que está havendo agora, dirão que os pobres estão tendo a punição justa por se apropriarem do que não é deles e que ninguém, nem o Estado, nem nós, deveríamos ajudar tais ‘vagabundos’? Quantos não se apressariam a dizer que eles são um bando de drogados, de preguiçosos, de parasitas estatais que só sabem fazer filhos e que, portanto, merecem sofrer o que estão sofrendo? Enfim... Parece que só o ódio e a intolerância é o que abundam no mundo. Infelizmente, o fogo não conhece preconceitos: ele destrói o que há pela frente e não se importa com sua classe social.”, respondo, um tanto pensativo.

“Parece que o fogo está sendo controlado, querido. O que nos resta é torcer para que nada de ruim tenha acontecido e que ninguém tenha morrido ou se ferido com gravidade. E... Querido... Querido!”, e só assim ela consegue me despertar de um sono súbito que tive, ainda que acordado. “No que você está pensando?”, ela faz um adendo, sabendo que preciso conversar com alguém sobre as minhas recentíssimas descobertas. “O fogo é democrático? É claro que se eu imolar alguém, por mais puro ou rico que seja, irá perecer até se transformar em cinzas. O fogo, querida, tem o poder de transformar a tudo que está em sua volta: mudança de estado, mudança de status, e por aí vai. Mas quantas casas de rico você ouve falar que sofrem incêndios? Sei que devem existir, mas devem ser bem poucas. E, por outro lado, dia sim, dia não, ouço falar de uma favelinha que foi consumida pelas chamas, de alguns casebres destruídos pelo fogo, de pessoas que estão na miséria serem atacadas por este monstro ígneo quando estão dormindo e, portanto, indefesas. O fogo é, portanto, democrático?”, falo com uma paixão na voz, algo que não me é normal e, pensando um pouco mais, é até um tanto hipócrita. “Quando o deixam entrar, ele é. Mas não é sempre que tem portas abertas: o mesmo acontece comigo e com minhas parentas, a Depressão e a Saudade. Mas, quando podemos entrar, passamos a tratar a todos como iguais, pois é assim que vocês são. O mesmo acontece com o fogo.”, respondeu a Solidão, com uma tranquilidade muito grande, mas não a dos cínicos, senão a dos amantes. “O fogo é, portanto, democrático. A solidariedade e o sofrimento é que não são. Estou certo?”, pergunto, com um ar de desafio. “Sim. E não somos os responsáveis por isto: as chamas trazem mudança para o que pode ser mudado. Não é o caso da natureza humana.”, e, com esta conclusão muito satisfatória, posso voltar a olhar para o vazio, com o céu um pouco mais limpo do que antes, fazendo-me esquecer de toda a pobreza e mazela de antes. Apesar de tudo, ainda sou humano, e isto não é bom.

Marcos Paulo Barbosa da Silva
Enviado por Marcos Paulo Barbosa da Silva em 22/02/2017
Código do texto: T5920164
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