É CARNAVAL

O rapaz vai pela calçada, barba por fazer, abadá customizado. Não tem mais que vinte anos, a julgar pelo rosto ainda despido das marcas do vingativo tempo. As lentes escuras do Ray-Ban certamente escondem expectativas para o fim do dia. Na calçada, larga a latinha de cerveja.

A jovem, cabisbaixa, atravessa a rua: vai curtindo no Instagram sorrisos e corpos purpurinados... Os olhos, perdidos em tantas fotos e desinformação, ocultam dos demais foliões seus sonhos de menina-moça.

A juventude se cruza na ladeira Raul Soares e não se vê. Enquanto isso, o velho de boné vermelho buzina e xinga no trânsito congestionado. E, em algum canto aqui do prédio, um vizinho ouve axé music.

Na praça, fantasiada de cigana, a criança chora: perdeu-se da mãe enquanto o bloco passava. Seus olhos ávidos percorrem fantasias, confetes e abraços ousados; se assustam quando alguém grita “pega, ladrão”. Embriagada de cor e sons a multidão não ouve o grito e os apelos da ciganinha.

Longe, o saudosista conta estórias doutros carnavais. Diz aos jovens ouvidos desatentos que carnaval bom era aquele dos tempos de Joãozinho Trinta. Às crianças entediadas, conta que foliava nas matinês da Scipião Rocha fantasiado de palhaço, Super-homem, Zorro, índio, ao som das marchinhas do Kelly. . As palavras, no entanto, já mofadas, sucumbem ao tum tum tum incessante das ruas.

Descamisados mijam no muro da escola. Na esquina, dois caras de cabelo platinado acendem um baseado, indiferentes aos foliões. Do décimo andar, vejo o bloco que passa e arrasta consigo a leva de gente uniformizada: todo mundo idêntico e embolado feito frango em granja. Crocotó late insistentemente na varanda. No quarto, diante do ventilador indolente e alheio à algazarra carnavalesca, alguém lê velhas revistas do Tio Patinhas.

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 26/02/2017
Reeditado em 06/02/2021
Código do texto: T5924523
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