Siriguela

Um dia o jogo vira. Siriguela jurava para si mesmo, mas lhe faltava atitudes para ter coragem. O irmão mais novo enfrentava quem viesse se perdesse na mão decidia na pedrada, Corante com pouco menos de treze anos fizera um rombo na testa de um desafeto de quase trinta. Siriguela era a vergonha da família.

— Seu Gasparini, o senhor vai me desculpar, mas Siriguela ou é viado ou tem vocação para rezar missa! – Dizia o vizinho de cócoras no portão.

O pai coçava a cabeça e a mãe acendia vela para São Judas Tadeu. Siriguela tinha medo de dormir e acordar sonâmbulo dentro de um cemitério. Para ele as almas penadas saiam de noite para dançar sobre as sepulturas, algumas se arriscavam fora daqueles muros e eram notadas pelos cães, motivo de alguns latirem tanto o silêncio das madrugadas. Ele também não queria ficar acordado, já ouvira dizer que a insônia causa velhice precoce, a ultima coisa que desejava na vida era terminar os dias feito “Benjamin Burton”. Sem contar que mal se alimentava por medo de aumentar colesterol ruim, mas temia as doenças ligadas à falta de alimentação que originavam outras que poderiam complicar os ossos, os olhos e até os rins. Certo dia por medo de continuar vivendo, deixara uma carta despedida sobre a mesa, iria se matar. Levantou-se antes do despertar do relógio da mãe. Não escovou os dentes, pois não via mais objetivos naquela higiene, morto não precisava abrir a boca, levou apenas a carteira de identidade solta no bolso, temia ser sepultado como indigente. Na rua apenas os cães que esperavam o entregador de jornais para latir. Considerou que a sua roupa poderia servir de vestimenta para alguém que necessitasse, então despiu-se e deixou calça, camisa e cueca por onde pisava. Estava livre, pela primeira vez não era atormentado por medo algum, adorava aquela sensação, era um novo Siriguela, o frio que entrava pela abertura das nádegas invadia os orifícios enrugados, ele não se importava, refletiu que aquela coragem fosse coisa de gente que decide morrer, já era um prenuncio do que enfrentaria do outro lado. Quem houvesse cumprido com o seu papel sem exagero nos pecados, passaria por um tribunal, onde segundo já lhe disseram, há um livro feito aquele do fiado, que tem na Mercearia onde o pai é credor, ali um cara da confiança de Deus soma tudo. Mas o tanto de pecado não pode ultrapassar vinte e cinco por cento da idade, ou seja, se o cara tem cinqüenta anos ele só pode ter doze vírgula cinco de pecados. A cabeça de Siriguela começava a esquentar, mas seu raciocínio pós morte não parava. É por isso que dizem que os bebês vão todos para o céu, é pelo tempo de pecar que ainda não tiveram, ponderava sem pausas. De repente ele para, começa fazer a matemática da sua trajetória, quantidade dos anos vividos adicionando os pecados. Mas havia algo muito importante a ser lembrado, pecados não tem o mesmo peso, alguns são maiores outros menores. Isto a tia que decorava a Igreja não cansava de dizer. Siriguela estava no auge tacanho dos seus vinte e oito anos, metade era quatorze, metade de quatorze é sete. Mas é um numero muito pequeno para quem espiava a irmã no banho, colocara urina no café do avô, soltara pum e apontava os colegas. Ainda, não eram apenas estes, a lista era interminável, poderia chegar facilmente ao dobro do que já vivera. O jeito seria preparar-se para o inferno, ver de perto Adolf Hitler, Benito Mussolini, Dona Geralda e “Pica Preta” o terrível estuprador de senhoras na Vila Cartolinha. Não, Siriguela já não detinha os planos de mudar o status de vivo para falecido, se lhe fosse de direito uma chance, a menor que existisse de ir para o céu, partiria naquele instante, tinha o avô que fora bondoso em vida que talvez desfrutasse de uma moral com São Pedro, mas não queria tirar o sossego do velho pedindo favores, também já ouvira do pai que em tempos de moço o patriarca frequentava os bordéis, corria o risco de estar lá para as bandas dos infernos. Melhor seria abortar aquela tramóia, voltar para casa e seguir com seus medos. Mas o dia descortinava entre as árvores, e, as pessoas saiam das suas casas, mulheres para as academias, crianças para as creches, maridos para as fábricas, tudo parecia sem novidades. Porém Siriguela estava ali naquele dilema da Esfinge, pelado em um transe catatônico para livrar-se das idéias suicidas. Só voltou a realidade quando a policia foi chamada para tirá-lo das garras de enfurecidos transeuntes, por pouco não foi linchado.