Ao som da guitarrada - baladas e "dramas" nos circos, no tempo da infância

Ao som da guitarrada - baladas e "dramas" nos circos, no tempo da infância

A primeira vez que ouvi o som das guitarradas foi nos alto-falantes dos circos que vinham à minha cidade - isto quando não estavam tocando Poly (quase sempre faixas sacadas do disco "Moendo café") ou easy listening de Paul Muriat ("Love is Blue", "Aquarius", "Saynoara"...).

O papa do ritmo paraense era o mestre Vieira. Mas, foi o som da guitarra do Aldo Sena - mais jogado, com a batida parecida com a marcha (por isto, o pessoal do centro-oeste dançava o carimbó, com os passos desta e, não, os originais!), com notas menos fluídas e fixadas nas divisões do andamento da melodia, solos nas cordas de notas agudas com repetições de trechos nas cordas graves, trechos com notas oitavadas que lembravam o som das violas caipiras e tinha um timbre parecido com o da guitarra do caribe que chegou por aqui e grudou rapidamente no ouvido de todos.

Sobre a concepção sonora da guitarrada, o mestre Vieira declara que ele vem, em primeiro lugar da influência da música caribenha, misturada com os ritmos presentes no estuário do Marajó, que ele sintetizou e batizou intuitivamente com os nomes de "lambada" e "guitarrada".

Num mundo analógico e cheio de distâncias e vazios demográficos, o som das guitarradas chegou as fronteiras do centro-oeste e sul do país através dos discos e fitas cassete levadas e passadas de mão em mão pelos imigrantes, vendedores e representantes comerciais, caminhoneiros e o pessoal ligado aos circuitos de festas do interior - mascates, barraqueiros e artistas de circo.

Até o início dos anos 80, os circos eram pontos importantes de divulgação da música interiorana, sendo eles os palcos mais frequentes e seguros para a música que não tinha lugar, além do espaço regional e rádios AM. E haviam dois tipos de circo. Os "de lona", com espetáculos variados, que iam dos esquetes de palhaços, shows de mágicos, atiradores de faca, malabaristas da corda bamba e, mais raro, trapezistas e domadores de animais e "de tourada", onde haviam de ordinário, os campeonatos de montaria em touro e cavalo e, shows de música sertaneja, geralmente com artistas regionais - caso das duplas Sinval e Dalmi - este, nascido no vale do rio Turvo, Praião e Prainha e, Trio da Vitória, que sempre cantavam nas temporadas do Asa Branca em minha cidade natal - Turvânia-GO.

Mas, na propaganda volante e nas aberturas de espetáculos, havia sempre lugar para execução música mais variada, do nordeste, norte e estrangeiro, o que funcionava como uma fonte gratuita e eficaz de divulgação para artistas "de fora", caso da guitarra havaiana do Poly e da guitarrada de Carlos Sena.

Em algum ponto, a vocação dos dois tipos de circo se misturavam. Os "dramas" de west spaghetti, inventados por Leo Canhoto e Robertinho ("Jack Matador", "Homem Mau" e muitos outros) e que foram copiados por boa parte das duplas sertanejas, caso de Lourenço e Lourival que, a partir de uma música que narrava uma tragédia terrível e macarrônica, criaram um clássico do gênero, "O milagre do ladrão", espetáculos nos quais as duplas sertanejas reservavam para si e se revesavam nos papéis reservados de mocinho e bandido, com a participação do pessoal do circo no papel de coadjuvantes ou claque, espetáculos eram apresentados, em geral, nos circos de lona, por necessitavam de alguma estrutura, apoio e, maior capacidade de lotação para o público.

Mas, de vez em quando, os donos de circo de tourada, de olho na média de faturamento da magra bilheteria, também lançavam mão de de peças de farofa-oeste - normalmente apresentados por duplas sertanejas regionais, além de shows de mágicos e "dramas" com a mais diversa inspiração, tal como o cinema e até a bíblia, como por exemplo, o espetáculo "A ressurreição de Cristo", que vi no circo de tourada do palhaço Asa Branca, que se instalava pelo menos duas vezes por ano na praça da Matriz da cidade em que nasci, ao tempo de criança, e que consistia numa mistura do drama da crucificação de Jesus com o truque mágico da escapada meio assustador da escapada do enterro em uma sepultura...

Num mundo analógico e cheio de distâncias e muitos vazios demográficos, o som das guitarradas chegou as fronteiras do centro-oeste e sul do país através dos discos e fitas cassete levadas e passadas de mão em mão pelos imigrantes, vendedores e representantes comerciais, caminhoneiros e o pessoal ligado aos circuitos de festas do interior - mascates, barraqueiros e artistas de circo, que trafegava num circuito de longa distância, que era cruzado, quase sempre, em estradas ruins que moíam o estado de conservação dos veículos e a paciência de seus condutores.

Este tráfego informal e voluntário de informação musical (era o Brasil distante querendo se apresentar de forma amistosa, simpática e, todavia, orgulhosa, ao Brasil vizinho) está na gênese do que viria a acontecer a partir dos anos 80, quando Belém (lambada, brega e, meta-brega) e Salvador (axé music e samba duro) apareceram e se firmaram como fortes polos de produção e divulgação de música regional, movimento que seria seguido por Goiânia (música sertaneja urbanizada e indie rock) e Recife (mangue beat e armorial), na década seguinte.

Tenho uma história ligada ao assunto, publicado aqui no Recanto das Letras, cujo título é "Circo de Rodeio Asa Branca apresentaaaa: aaa ressureição de Cristooo! (que recebeu uma réplica ainda mais engraçada de uma colega lá do estadão do Pará)", que convido os que não leram a visitar e ler.