A IDA

Era um momento de ócio e expectativa. Na sua velha cadeira de balanço bastante surrada, como um pêndulo a movimentar-se, ela fazia um retrospecto mental de sua longa estada naquela também velha casa. Já passava dos noventa. Olhava para o teto, pouco mofado. Os marcos das portas eram de madeira de lei, foi o seu falecido marido que havia colocado. Foi há muito tempo. Os cupins não os venceram. Nas paredes, as inúmeras camadas de tinta das últimas décadas foram aparecendo estouradas em bolhas de diversas cores. As camadas sobrepostas descolando-se da parede pareciam flores. Ali foi feliz, seu marido o foi também, assim como os seus filhos. Seus netos gostavam da casa, era aconchegante. Agora é uma casa velha, mas antes era um bom lar. Casa é fácil de montar, empilhamos um monte de tijolos ou pregamos umas madeiras, colocamos janelas e telhado e está pronta. Lar é outra coisa. Lar é a vida que a gente dá àquela construção. SOMOS ASSIM MESMO, DAMOS VIDA ÀS COISAS INANIMADAS. Por isso que chamamos o lugar onde moramos de lar. É um “ente” vivo impregnado com as nossas próprias vidas. Naquela apreensividade tamanha, fixou o olhar num rabisco que surgiu por debaixo da tinta fujona. Voltou no tempo, e lembrou-se do desenho feito por ela, pois viveu grande parte da sua longa vida naquela casa. Parou imediatamente o vai e vem da cadeira e descascou a parede até o desenho aparecer por completo. Vagarosamente foi até a cozinha, apanhou uma faca e tirou parte reboco com o afresco. Enrolou num pano e voltou pra cadeira. Seria uma recordação do lugar que tantas alegrias lhe proporcionaram. A casa seria demolida. Seus filhos, com a sua concordância, venderam-na para uma construtora. Um deles já estava chegando para buscá-la. Irá para uma casa geriátrica, pois assim ela desejava. Sentir-se-á mais segura. Já havia cumprido o seu papel e passará para uma nova etapa de sua existência. Quando ela virar as costas e olhar para trás, somente verá um monte de escombros, pois a vida esvaiu-se daquele lugar. Virá uma nova construção, será um prédio de muitos andares, que abrigará novas famílias de jovens ou não, e o lugar se encherá de vida novamente.

E são estas as suas palavras: SE EU FUI CAPAZ DE DAR VIDA ÀS COISAS QUE TOQUEI, DURANTE A MINHA EXISTÊNCIA, JÁ TERÁ VALIDO A PENA. Guardarei meu pedacinho de reboco com o meu desenho numa redoma, como um tesouro simbólico de uma vida feliz que tive num lugar feito de tijolos e tintas. Vou para um asilo, por que eu assim desejei e tenho a certeza que viverei feliz lá, pois TUDO QUE EU TOCO VIRA FELICIDADE. Farei novos amigos. APRENDI QUE NÃO TER AMIGOS É NÃO TER GRAÇA NA VIDA.

E assim terminarei meus dias.

Meus filhos, netos e bisnetos irão lá para visitar-me periodicamente, pois assim os preparei. Estarei bem.

EU SÓ TENHO GRATIDÃO E FELICIDADE.

Sérgio Clos