A volta sem infinito

As famílias possuem certos objetos na conta de monumentos. São mesas, tapetes, colheres, relógios e afins. O avô sentava-se nessa cabeceira; finado José comia com essa colher; naquele tapete ficou a marca de suas botas cheias de barro; aquele relógio badalou seis vezes assim que a morte foi confirmada pela família. E dessa forma as pessoas são meros espectadores de uma vida que não as suas.

Meu pai chegou com aquele relógio vindo dos confins do Nordeste, não sei bem de onde, nunca soube. Era uma peça maciça, com ponteiros longos, números romanos e um vidro protegendo o mostrador. Mãe colocou-o na parede e lá ficou o objeto, apontando pelo meu cotidiano, ainda que eu não estivesse por perto.

Mudamos daquela casa, eu levando o relógio sobre minhas pernas, e ele ainda apontando o tempo. O caminhão dobrou esquinas, virou pra lá, cá, mas o ponteiro só andava em círculos. Na minha cabeça de menino, eu é quem estava em vantagem.

As paredes novas beijaram o corpo triste e rijo do relógio, que só andava no mesmo tom, nunca antes nem depois. Assim foi em outras casas, paredes e cômodos estáticos. Veio a queda, forte e violenta. A madeira rachada já dizia que as coisas iriam mudar.

O relógio marcou brigas, o tetra da seleção, a morte do avô, a separação, coisas tantas e tontas. Mudou, mudou tanto que numa hora não quis mais andar. Pararam os ponteiros, calaram-se os minutos, e a vida agora corria lá fora. Passou muito tempo assim, sob o pó, calado e cansado. Tentou-se contato, mas não houve resposta.

Agora, na última mudança, ele ainda veio. Olhamo-nos seriamente e percebi, sem espanto, que o tempo havia escapado pelas rachaduras da madeira, um tempo que nunca fora meu, como meu nunca fora também o relógio, mas da família, que igualmente jamais me pertenceu.

Coloquei-o entre escombros e sacos de lixo. No entanto, ainda num ato bobo, achei uma velha estante e em uma de suas prateleiras deixei aquele relógio, que uma vez foi árvore, foi objeto, mas nunca tempo. Virei as costas e atravessei a rua, uma chuva ameaçava no céu.