CHÃO QUE DESLIZA: É ÁSPERO

Hoje acordei e havia sabão ao meu lado, no chão, ouvi de longe o canto encantado do sabiá e fiquei lisonjeado, agradeço, mas ao mesmo tempo frustrado, o canto do sabiá na cidade significa que está tarde para acordar. Pus os pés no solo ensaboado e saí deslizando o dia todo. Não achei o chinelão pra calçar, meti o tênis de sempre e fui ao trabalho mas na volta chovia como tempestade. Peguei chuva e o sapato se descolou da sola, voltei com o pé direito do calçado na mão sobre o chão deslizante e sob passo truncado. Lembrei da minha cachorra de nome humano: "Bruna”, ou, "Bubu", como ficou conhecida. Ela deslizava muito mais que eu pelas ruas da cidade, era uma cigana labradora de patas de patins e de uma simpatia sem igual. Nessa época minha família passava por dificuldades financeiras e a Bubu sofria as mesmas conosco. Eu trabalhava e meus pais também e meu único irmão – idem. A Bubu passava a maior parte do tempo sozinha e deprimida, os poucos momentos de alegria eram com minha chegada, eu passava as mãos sobre os pelos marrons-chocolate da Bruna e abria a gaiola pro passarinho brincar.

Ela saía afoita como uma pessoa frente ao oásis no deserto. Tomava da sua liberdade desmedida todos os dias e chegava horas depois fedida a peixe podre. Meus pais se aborreciam demasiadamente com tal fato corriqueiro.

Tempos depois, eu chegara em casa num dia comum e a pergunta "cadê a Bubu?". Bem, foi dar uma volta, pensei, pois ela escapava pelo portão como linguiça ensaboada.

No fim do dia perguntei aos velhos pais "onde está a Bubu?", eles com certa dificuldade de dizer o ocorrido... Bem, demos a Bruna para um conhecido, disseram-me, ele mora na cidade vizinha. Nossa, isso foi um choque enorme, deram assim de mão beijada uma parte minha, minha simbiose animalesca. Um mês se passara e eu sentia o cheiro dela pela casa: o cheiro do peixe podre em seus pelos espalhados pelo chão e a marca que seu corpo deixara pelos cantos dos pisos da casa, e ainda os chinelos marcados por seus dentes. Chegava do trabalho e não via aquele rabo balançando de alegria pela minha chegada, o mesmo rabo que ora batera centenas de vezes em copos de vidro que se partiram e a cada copo partido eu me lembrava com coração espatifado feito dezenas e dezenas de copos imantados em minha memória.

Um dia cheguei do trabalho: a Bubu ali estava! Comecei a chorar novamente e ainda outra vez choraria se possível. Abracei-a chorando e logo percebi o estado em que se encontrava. Um estado de encarquilhamento severo, magra e corroída, fraca e claudicante, sem pelos e fedida, suja e cansada. Foi uma cena horrível e maravilhosa. Em seguida logo perguntei aos meus pais o que havia acontecido. Eles, com voz embargada me disseram que quando perceberam a chegada da Bubu, fizeram uma ligação ao "dono". Este que respondeu com uma surpresa enorme: Há uma semana ela desaparecera! Uma semana desaparecida, atravessou a cidade perdida, procurou com seu olfato qualquer rastro de célula ou partícula que remetesse à nossa família e nosso lar onde ela nascera. Coloquei-me a cuidar dela como cuido de minha caminhada ensaboada e vacilante.

Parece-me um dia especial lembrar dela com carinho, há cinco anos ela deitou e olhou levemente para cima, eu não estava, enrijeceu seu corpo no chão ensaboado, e morreu.