Café a dois

Você pode não acreditar, mas a gente vai acabar se esbarrando por aí, mais cedo ou mais tarde, quem sabe quando a gente não lembrar mais nem do nome um do outro. E você vai me convidar pra um café. "Bora lá". Bora. Apesar de arregalar meus olhos costumeiramente por baixo dos óculos escuros; um cara me ensinou que eles eram um ótimo aliado pra timidez. E desculpe fugir do assunto, mas eu também vou te flagrar algumas vezes fitando meu sorriso e sabe, não há nada de desconcertante nisso, tem até quem goste. E pode ser que entre os passos largos até o café a gente acabe concordando sobre a data em que a gente se conheceu mesmo. E porque sumiu? Tanto faz, é só um café. Aliás, o "bora lá" agora já é um "estamos aqui", e que estranho cruzar olhares sem jeito pra quem curtiu se reencontrar. Eu também percebi que você achou estranho que eu puxei minha própria cadeira; não preciso da sua cordialidade, recado dado. "Dois cafés, por favor". "Sem açúcar". SEM AÇÚCAR? Que delícia seu espanto. Eu me esqueci completamente de como era bom te surpreender com as minhas reticências sórdidas. Mas é bem verdade que nosso café vai ficando mais amargo ao longo dos anos, e presumo eu que precisarei ficar mais acordada daqui uns anos. Eu não mais nos meus dezoito e nem você nos seus vinte e tantos. Mas o futuro é mesmo lindo, que a falta de açúcar vira assunto, e quando dei por mim, você já estava à vontade de novo pra rir das minhas piadas. De novo? Pois é, não me lembro bem se você ria mesmo delas. Tanto faz, é só um café. Mas é bem verdade que seu riso solto me deixou à vontade pra falar de mim como eu sempre gostei de fazer. E quando a gente perceber, eu vou estar te explicando que seu signo é de água e que eu tenho lua em capricórnio e blá blá blá. Aliás, obrigada por fazer cara de interesse (aqui estou eu cheia de cordialidades). E talvez eu ainda reclame de cálculo como antigamente, ou da faculdade, ou do trabalho, quem sabe do quê. Certamente eu irei reclamar, mas você com seu mais desbocado e sincero sorriso vai dizer que tudo faz parte. E no fundo eu sei que faz parte, só gosto mesmo de ver como você sempre tem as rédeas da situação e como eu levo as coisas soltas. Você tão metódico e eu sonhando. Gosto da ideia de me jogar num penhasco e ter alguém como pára-quedas. Como se eu me jogasse de algum penhasco. Bem, sair do meu mundinho cor-de-rosa pro deita-e-chora diário é quase a mesma coisa. O papo já está rolando a tanto tempo que evoluiu para aquela conversa corriqueira de encontros comuns. Viu aquele filme? Vi. Ouviu aquela música? Ouvi. Li um livro que é a sua cara. Mas eu não leio! Ops, eu tinha que tentar. Meia hora de café até que eu perceba que talvez não se passou tanto tempo assim, e é incrível como algumas coisas nunca mudam. Você por trás da barba ainda é o mesmo menino, e eu ainda uso os óculos escuros pra disfarçar a timidez. No fundo é aquela velha história do arroz antes do feijão, que a gente sabe que é o jeito certo e se incomoda vendo as pessoas fazendo errado, e bom, nesse caso é a gente errando mesmo. E eu gosto mesmo e já consigo prever quando chegará aquele ponto da conversa onde a gente começa a rir um do outro, procurar no ambiente sutilezas toscas pra criticar, e eu posso imitar agora a cara que você fará quando eu analisar a personalidade de alguma senhora só pela roupa que ela usa. Não sei de onde vem essa criatividade absurda, mas é tão interessante essa sua cara pra mim. Acho que nossa especialidade deve ser essa, fingir que um encontro casual mata nossa saudade. É estranho eu ainda te tratar como pilar das minhas crises tendo medo de te ligar tarde da noite. Ironiza o destino esbarrando quem devia se ver todo dia. Quem sabe a vida comete o desprazer de seguir esse roteiro e cara, que bom que a gente vai se esbarrar. Vai tomar um café. Rir risos antigos e até se dermos sorte toque nossa música em algum canal aleatório de TV que eles gostam de deixar ligado nos cafés. Deu pra ver que eu não sou mais uma garotinha com peculiaridades demais né? Você, no entanto, ainda vai ser meu acaso mais bonito.