Dom Alcunha

Zé da Cunha era um cidadão incomum. Tão incomum que recebeu dos amigos mais chegados, a alcunha de "Dom Alcunha".

Dom Casmurro, segundo o Machado, fora assim alcunhado não só pelos seus "hábitos reclusos e calados", mas também para atribuir-lhe "fumos de fidalgo". Dom Alcunha, nosso herói, até que tinha essas primeiras qualidades, faltando-lhes as segundas. Entretanto, o que melhor lhe definia - com raras comparações - era o hábito de botar apelido em todos que cruzavam seu caminho, fossem parentes e amigos, inimigos, colegas de trabalho ou apenas almas desconhecidas passando por perto ou dividindo com ele algum espaço.

Chamava seu próprio pai de "Pouca Telha" porque o infeliz vinha perdendo precocemente os cabelos do cocoruto.

Gozava da ferrenha antipatia de uma de suas tias que andava ultimamente com os glúteos à flor do chão, desde quando este lhe fez um cumprimento, na frente de conhecidos:

- Buenas bundas, tia BB!

- Tia o que, Dom Alcunha? - Perguntou, com medo de ter perguntado.

- Tia BB, Bunda Baixa - Sapecou.

Havia, portanto, uma relação de amor e ódio ao Dom Alcunha. Alguns detestavam os apelidos recebidos, outros pouco se lhe davam importância ou até gostavam.

Havia quem lhe pedisse espontaneamente um novo apelido, levando em consideração outras qualidades. O fato é que, quando pediam, não é que detestavam os velhos, mas pela expectativa humorística dos novos.

Dom Alcunha também não era burro. Havia apelidos que, de bom alvitre , era melhor não pronunciá-los. Chamava secretamente seu chefe, que tinha um perímetro cefálico avantajado, de Cabeça de Aro. Segundo seu ignoto pensamento, o chefe não havia "nascido normal". Sua cabeça fora "desembeiçada", como fazem os borracheiros sacando aros de pneus.

E o ambiente mais propício para Dom Alcunha garimpar essas pessoas e levá-las à sua particular pia batismal era os ônibus coletivos. Todo dia, no seu percurso normal de idas e vindas (mais as idas, quando o humor era mais apurado) ele aumentava sua lista de apelidados, por mero prazer de cadastrá-los secretamente.

Certo dia, viu entrar no ônibus uma mulher, mais parecendo disposta a desfilar na Sapucaí do que ir trabalhar. Suas vestes eram extremamente coloridas e exóticas. Não bastasse isso para chamar a atenção, a periquita australiana tinha um nariz aquilino e desdenhoso. Bingo! Virou a Tucanoa, que era uma mistura de tucana e pavoa.

Um conhecido de vistas que trabalhava no foro da cidade, era tão alto que se abaixava toda vez que entrava ou saia do ônibus para não bater a cabeça. Em dias de calor Dom Alcunha, que já tinha certa intimidade urbana com o galalau dizia:

_ Aí Ferrolho de Igreja! Dá pra abrir o alçapão superior aí pra galera?

A um cobrador de ônibus baixinho ele sempre dava bom dia seguido de "Tamborete de Forró".

Tinha apelidos até para os plurais, pois passou a chamar um casal de gordos que quase não passava na catraca de Baiacu e Rolha de Poço.

Há de se concordar que, andar num ônibus em que lá estava Dom Alcunha era como andar num barril de pólvora. A coisa poderia feder toda vez que alguém não gostasse de ser chamado por outro nome, não fosse esse de batismo normal.

Tal aconteceu certo dia quando Dom Alcunha vinha de pá virada porque acordou tarde, sem ter tido tempo de sopitar um cafezinho.

Estando confortavelmente sentado, teve que ceder o lugar para uma senhora grávida, a julgar pelo volume do seu ventre. Ele não perdeu a oportunidade de chamar de "Olho de Jipe" o vizinho de banco que fingia estar dormindo para não ceder o lugar à senhora, mantendo os enormes olhos fechados.

Não demorou muito, chegou uma amiga da gestante e puxou conversa, parecendo estar numa feira livre:

- E aí mulher? Vai nascer quando?

- Obrigada pelo elogio, mas já estou perto é de morrer - disse mostrando os dentes afiados.

- Fresque não mulher! Estou falando do herdeiro.

- Ou herdeira! - Completou.

- Pois que seja. Mas diz aí. Já fez as pazes com a vizinha? - perguntou, mudando o assunto.

- Sim. Ela já superou até o problema da galinha.

- Não me diga! - Disse puxando conversa - Como foi isso?

- Todo dia a galinha dela pulava o muro da minha casa, surrava meu gato, saltava em cima das mesas, sujava tudo e ainda virava as latas de lixo, caçando farelos.

- Você já tinha me falado isso.- lembrou. - Mas o que você fez?

- Num dia que eu estava sem mistura pro jantar, esperei a galinácea pular dentro de casa, abafei a cabeça dela com um pano de prato, quebrei-lhe o pescoço e joguei-a na lata de água quente que já estava preparada.

- Que horror!- disse assustada. - E aí?

- Comi! E ainda levei a farofa pra comer no trabalho.

A essa hora, Dom Alcunha, os passageiros e toda torcida do Flamengo queriam ouvir a história.

- Conta mais. - Insistia a lambisgoia

- Eu falei pra ela que comi a galinha e se ela achasse ruim comeria o pinto, o gato, o cachorro.

Todos se viraram para melhor ouvirem aquela conversa maluca.

Com os pés já ardendo, Dom Alcunha agora olhava para a barriga da mulher sentada, imaginando ali uma galinha atravessada, em vez de um feto.

Deu sinal de parada e antes de descer fez questão de gritar, a plenos pulmões a alcunha da nova agraciada:

- Vai raposa! Espero que teu filho nasça sem bico.

Dizendo isso, Dom Alcunha desceu rapidamente sem olhar o ônibus que seguia viagem e sem querer ver a silhueta de uma mulher bradando com um guarda-chuva na mão, acima da cabeça:

- Filho de uma égua! Amanhã eu te pego, Dom Alcunha de uma figa!

José Freire Pontes
Enviado por José Freire Pontes em 07/05/2017
Reeditado em 17/01/2020
Código do texto: T5992381
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.