Panelas no ar

"PANELAS NO AR"

Terceiro andar do prédio ao lado. Por via de uma das janelas da casa, era-me possível observar a silhueta que representava na perfeição a cena de pancadaria entre o casal. Às sombras em movimento, não disfarçavam os violentos golpes que o marido projectava à esposa. Faziam poucos instantes que os ponteiros do relógio rasgaram a meia noite. Tratava-se de uma senhora linda e bem posta, uma senhora aparentemente emancipada. Senhora de respeito, como se diz na gíria Muangolé. Aquela jovem senhora, dona de casa e bem casada. Pelo menos é esta a falsa imagem que fazem publicitar no hall das classificações.

O esposo, um daqueles tipos que anda regularmente as gravatas. Por cá, as "gatas" do senso costumam chamar-lhes; o bom partido. Daqueles que as mães do tempo de hoje, dispensam o trabalho de analisar quando a filha leva-lhe a casa e as apresenta como pretendente.

Daqueles a quem qualquer jovem sonhador não hesita em dizer "Quando crescer, quero ser como o " Kota "sicrano. Senhor estudado, com os "is" e os " ts " nos lugares certos. Pelo menos é o que se ouve falar dele.

Tratava-se de um casal aparentemente perfeito; da comunidade religiosa de que eram membros, caiam-se-lhes em cima os habituais elogios resultantes da sociologia aparente:

" foram feitos um para o outro ".

Aliás; é um casamento realizado e abençoado com as pompas e as circunstâncias que o clero faz questão de chancelar.

Eu mesmo, acostumei-me vê-los aos domingos, quando se dirigem à igreja. Teatralizavam bem, o casal social ideal, esteticamente bem combinado , dócil e amoroso. Os sorrisos, embalsamavam na esquadrilha a sepultura matrimonial que eram as quatro paredes da casa a que chamavam lar.

A chuva miúda que se fazia cair na noite, embelezava o triste cenário. A suposta residência de família era no final das contas um palco anfitrião de violentos confrontos. Uhm! Simplesmente naquela noite, esqueceram-se de baixar as ombreiras daquela janela específica.

De longe, eram visíveis os movimentos das sombras. Violência e brutalidade explícita.

Estava eu abordo do meu quinto amor de cor azul, exactamente no o ângulo perfeito que visualizasse a triste cena pela janela.

Vou ligar a polícia. Pensei eu em rápido monólogo. Pois, eram fortes os golpes que de longe observava serem violentamente projectados para a linda senhora, por via das sombras em movimento.

Por baixo do edifício, estava lá um velho que relaxava com o seu cigarro a boca. Igualmente já acostumado ao episódio a dizer-me: Nesta panela não se mete a colher meu jovem.

Vá mazé dormir, que é o melhor que fazes. Hás de perceber que amanha a vida continua.

Sem perceber coisa alguma; decidi seguir o pronto conselho do vizinho, e " bater "o meu merecido cochilo.

De manhã, o sol abençoava-nos já com a sua milagrosa presença. A manhã era um facto. Ainda os vi entrar em sua viatura a fim de cumprirem a hora do expediente, tal como o fazem todos os dias. Como se da pretérita noite não houvesse triste ocorrência que dela se fale.

O senhor, com a sua postura de homem normal, há muito havia sepultado às reais motivações que fazem um homem se juntar a uma mulher. Se é que alguma vez tais motivações existiram. E ela, com um sorriso no rosto, disfarçando a prisioneira que tem por dentro.

Era daquelas mulheres que olha para o espelho e vê uma estranha a olhar para si mesma. Não é normal o facto de uma mulher suportar tamanha violência sem nada poder fazer a respeito.

A atmosfera social, que pintou a mulher perfeita e submissa, aprisiona-lhe todos os seus direitos existenciais.

Já eu costumo dizer que a moral e a religião são assinas, quando não abordadas com a humanidade que se impõe.

E os miúdos? Coitados; Com as mochilas da escola as costas, pareciam dois anjinhos que incubaram monstros dentro dos seus espíritos. Porque haverão de detestar o amor algum dia, por não terem referências dignas de convivência em sua própria casa. Fizeram tudo como se nada houvesse passado a noite anterior.

Desabençoados foram os meus olhos por presenciar tal infortúnio. Continuo a achar que as pessoas deveriam casar por amor. Os votos matrimoniais, começaram a falhar no momento em que foram declarados. De facto, estes dois um dia o fizeram.

Mas o contexto é estúpido. Eu sei que os contratos substituíram os afectos. A isto, se costuma chamar de sociedade moderna.

Depois me dizem a mim, que a família é o núcleo da sociedade.

Vai que...

Duarte Ombeu.

Duarte Ombeu
Enviado por Duarte Ombeu em 20/05/2017
Código do texto: T6003996
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.