O importante não é sair do armário, mas entrar nele

Engana-se quem acha que uma crossdresser utiliza-se da prática de vestir-se como mulher apenas como estratagema para uma noite de sexo. Vestimo-nos como mulher para nos sentirmos bem, pequeno exercício de fantasia, prazer em voltar-se a si mesma e reconhecer-se.

Engana-se também aqueles que acham que a vida de uma crossdresser é fácil, extremamente fácil. Talvez não passemos pelas agruras por que passam as travestis, expostas que estão à maior violência e exposição social; mas temos nossas mazelas também, nem sempre há brandura.

Muitas de nós passam apertos, mesmo muitas vezes morando sozinhas e tendo maior liberdade. A começar pelas roupas e sapatos. Tenho vários vestidos, gosto dos compridos, é meu estilo. Os sapatos, ah os sapatos, gosto mais que dos vestidos. Todos com salto. Fechados, sandálias de tiras, meia pata, ana bela. Ocupam espaços os danados.

Depois que me separei, isso já faz uns três anos, melhor não rememorar. Depois que me separei, o segundo quarto que tenho em casa passou a ser o quarto de hóspedes. Já era, antes, mas o armário ficava cheio de coisas do meu ex-companheiro, eram caixas, livros de faculdade, pequenas ferramentas de eletrônica, circuitos elétricos, fios, essas coisas de que os homens entendem tão bem e nós, mulheres, consideramos quinquilharia inútil.

O armário ficara vazio. Armários vazios são emblemáticos numa separação, melhor deixá-los fechados até que se fechem as feridas da alma também. Foi mais ou menos um ano depois que abri o armário.

Os vestidos puderam ser colocados sem que amassassem tanto, os cabides todos iguais. Uma gaveta de calcinhas, outra com os sutiãs, como eles ocupam espaço, ainda mais os de bojo. Os sapatos e sandálias foram todos ajustados em duas prateleiras, par a par, sem tumulto. Cestas coloridas organizavam maquiagem e utensílios de unha, esmaltes na lateral, numa pequena prateleira. Ganchinhos na porta, pelo lado interno, deixavam à vista e à mão as bijuterias. Não gosto de brincos, já disse uma vez. Colares e cordões têm de ser organizados assim, individualmente, principalmente quando se tem muitos, caso contrário nos esquecemos de usá-los, ficam lá, emaranhados no fundo da caixinha, abandonados, como muitas vezes ficam nossos desejos, na vida.

Pronto. O armário de Alice. De dar inveja a uma amiga, quando o viu pela primeira vez. Humm, olha os esmaltes, tudo organizado. Depois de mais de um ano, as portas daquele armário voltavam a ser abertas. Dentro dele, um mundo de novas possibilidades, de encontro de mim mesma, de resgate de uma parte da infância e da adolescência deixada de lado pelas esperanças outras que a sociedade deposita em nós, diária e cotidianamente. Dentro daquele armário, a vida que se impõe, nova. Aprender a viver sem o companheiro de quase dez anos é uma descoberta a ser feita, com novos paradigmas, de pequenos prazeres aqui e acolá, de resgate.

Ocorre que mesmo morando sozinha, uma crossdresser tem de enfrentar saias-justas, literalmente. Primeiro é a diarista. Há muitos anos trabalha em casa. Veio, sem rodeios. Uai, aquelas roupas lá, é de quem? Ah, são da fulana, minha amiga. Simples que é, deu-se por satisfeita com a explicação. Mas o pior estaria por vir.

Dos afazeres domésticos, passar roupas é o pior, para mim. Não passo. Uma tia, aposentada, faz isso. Em troca, um dinheirinho para as coisinhas dela. Minha tia não precisaria entrar no quarto de hóspedes, onde se esconde Alice. Mas eis que depois da terceira ou quarta vez que minha tia tinha veio passar roupas, sai-me com essa. Sentados no sofá, conversávamos sobre alguma banalidade, um acontecimento ali, uma fofoca mais adiante. E sai-me com essa minha tia. Ela. A pergunta que não quer calar: para que aquelas roupas de mulher no guarda-roupa? Assim, de uma vezada só, usando um chavão.

Que poderia responder, a não ser, de novo, credenciar as roupas, os saltos, as lingeries, as bijuterias e os esmaltes à minha amiga. Não acreditou não resposta, eu sei, minha tia. Rezava para que ela não emendasse um segunda pergunta: Fulana usa peruca? A peruca estava lá, sobre um molde de cabeça. Deve ter vida dupla minha amiga, deve ter pensado minha tia. Deve fazer o que para precisar usar uma peruca, com cabelos tão lindos que têm? Estou certa de que minha tia não só não acreditou como também era esta a resposta que queria ouvir. Não falou mais no assunto desde então.

Outro dia, fui fazer as unhas. Tinha comprado um esmalte novo, uma cor que combinava com um vestido estampado lindo. Gosto de me arrumar, não ia receber ninguém nem nada. Era final de tarde, o sol cansado da volta do dia. Quando acabei a última a unha, o interfone toca. Os pés não tinha problema, calçava meias. Mas, e as mãos? Luvas, isso as luvas que vêm em embalagem de tintura de cabelo. Não adiantaram, a cor escura do esmalte aparecia ainda sob as luvas. Sem contar, que estragou, pois não havia secado ainda totalmente. Desfecho: a acetona, não tinha outro jeito. Interfone impertinente. Tirei todo o esmalte, perguntei quem era. Minha tia. Com minha diarista a tiracolo, ainda.

Mudei as roupas e apetrechos da Alice de lugar, por via das dúvidas. Frequentam minha casa ainda meu tio e meu ex-companheiro, como amigo, registra-se. No caso de uma crossdresser, o importante não é sair do armário, mas entrar nele.

Alice Zanella
Enviado por Alice Zanella em 18/06/2017
Código do texto: T6030559
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