Memórias póstumas

Memórias póstumas.

No caixão ouço soluços e sou "banhado" com as lágrimas sinceras de meus queridos: esposa, filhos, netos, irmãos e sobrinhos. Alguns primos choram sinceramente outros esforçam uma lágrima fingida. Muitos "meus pêsames", muitos "meus sentimentos". Entre os presentes ouço uns dizerem: "era um homem bom"; "era cheiro de vida"; "na flor da idade". As vozes são baixas, mas as entendo bem. Ouço ainda os pensamentos de alguns: "graças a Deus essa desgraça morreu". Outros: "o que vai ser da viúva?" outros pensam: "amanhã arranjará outro e este coitado será esquecido. Afinal a vida continua." Cretinos! Nem no meu velório sou respeitado. Não esperam passar o luto da minha morte que pode ser apenas um dia, mas pode ser para sempre para alguns. Povo hipócrita! Bom é poder ouvir o que pensam da gente. Ah se é! Porque a gente acaba conhecendo a fundo as desgraças que se faziam amigos da gente.

Chegou a hora. Agora sou conduzido ao jazigo e quanto mais me aproximo do meu lugar eterno a choradeira aumenta. Vejam só: há desmaios. Desmaios por mim. Pudesse eu falar com os vivos falar-lhes-ia as palavras de Jesus na sua hora derradeira: "não chorem por mim, mas por vocês mesmo que ainda viverão neste mundo imundo e amaldiçoado. Graças a Deus que morri, amém!" a partir do pronome relativo QUE eu acrescentei. Jesus não falou isso, afinal, Ele amou este mundo maldito. Há um sentido de consequência nestas orações. Deixa pra lá. Para que um defunto explicar sintática de dentro do paletó de madeira! Bobagem!

Chegada nos infernos. A recepção não é das mais agradáveis, embora não veja nenhuma figura diabólica. Dizem que aqui quem manda é o cão. Mas, não tem nenhum diabo por aqui. No entanto, há um exército de vermes em desordem absoluta para me competir. São estes os demônios que encontrei.

As lágrimas cessam lá fora. A dor está sendo amenizada. As súplicas populares: "Deus conforte a família" estão sendo atendidas. Enquanto cessam as lágrimas e murcham as flores, meu corpo se decompõe e sou consumido pelos vermes fúnebres. Dá até vontade de dar risadas. Porque tanta ferocidade para devorar um corpo apodrecido? Tem gosto para tudo mesmo.

Aqui não sinto calor, frio, dor, alegria, exceto a "vontade de rir dos vermes" o resto não sinto nada. O que vai acontecer aos meus não mais me interessa, só a satisfação de saber que amanhã outros se juntarão a mim para alimentar este exército fúnebre que apesar de obesos são insaciáveis. Há sentido semântico nisso tudo. Não vou explicar. Não sou mais professor. Se este artigo ficar incompleto é porque os vermes me devoraram a mente antes de terminar, porque não tenho poderes para os afugentar e aliás, como já disse, nada sinto. Não sei se dói ou se faz cócegas as suas mordidas dilacerantes. De maneira que vejo-os mas não os sinto.

Faz dia que queria registrar este triste incidente. Triste para os vivos. Para mim tanto faz. Então resolvi escrever hoje antes que os vermes me devorem e aí sim, os vivos não saberiam o que se passa no inferno para onde todos descerão. ...

"Os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos nada sabem" Eclesiastes 9:5 e 10

CARLOS JAIME
Enviado por CARLOS JAIME em 24/06/2017
Código do texto: T6035986
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.