O professor de Linguística

Vicência Jaguaribe

O dono dos carrinhos de brinquedo

Tinha autorização do rei e da rainha

Para penetrar no mundo de arremedo

Onde uma banda tocava à tardinha.

O dono dos carrinhos um Gol largava

Pegava um Corola e via-se num avião.

Depois entrava num Honda e zarpava

Perseguindo, apressado, a ilusão,

Que, vendo-o chegar, rápido lançava,

Pelo fértil chão, grãos de imaginação.

Até ter o menino o fado preso

E bem seguro na palma da mão.

Vicência Jaguaribe. “No mundo

dos carrinhos de brinquedo”

In: Brincando no ritmo da Poesia.

Quis rir, mas me controlei. O menino, de 5 anos, iniciara a alfabetização e já estava ensinando Linguística ao avô, um senhor magrinho e de estatura um pouco abaixo da média; calmo, avesso a discussão e que brincava com os netos — três meninos em uma escadinha de 6, 5 e dois anos — como se fosse um deles. Para o mais velho, cujo sonho maior era voar, mas não de avião, com asas mesmo, ele dizia que já tentara quando tinha a idade dele, com asas feitas de palha de coqueiro. Com o segundo, o de 5 anos, que, num dia qualquer, não muito distante, lhe daria uma aula de linguística, ele conversava como se o menino fosse um adulto. Com o mais novinho, ele sentava na grama da casa de praia, para caçar barata d’água. Com os três, passava os fins de tarde procurando buracos de siri, ou contando histórias de sua infância — verdadeiras ou inventadas na hora.

Mas o menino de seis anos era sério e compenetrado, estudioso e inteligente — mais inteligente, convenhamos, do que estudioso. Perfeccionista com os trabalhos da escola, com a organização dos cadernos e com o trato dos livros, era o primeiro da turma em Língua Portuguesa. Era tanta a facilidade nessa disciplina, que, uma vez, um dos coleguinhas disse à mãe dele: Tia, toda a comida que ele come se transforma em português. O que não queria dizer muita coisa, pois ele mal comia. Tirando os três ou quatro copos de leite diários, ele comia quase nada.

Esse foi um problema que precisou de cuidados médicos. Porque quase não comia, não crescia e não engordava. Dizia-se que ele ficaria com o porte do avô. Foi necessário um tratamento à base de ferro. Nessa época, encontrou, no shopping, uma amiga da mãe, que se mostrou admirada com ele: Como você está grande e gordo! — Ela exagerava um pouco. De imediato, sem tergiversar, ele soltou esta: Também, agora eu só como ferro.

Com aquele corpinho de leveza quase imaterial, dava a alguns colegas a impressão de ser medroso e covarde. Não, não, isso ele não era. Tímido e cuidadoso, sim, covarde, não. Aliás, às vezes, eu dizia: Na realidade, ele não é tímido, mas cuidadoso. Pisa prudentemente devagar em campo desconhecido. Não gostava era de violência de nenhum tipo. Deixou, logo na primeira semana, o curso de judô — ou algo parecido —, no qual se inscrevera por exigência da mãe.

Se sofreu bullying? Sim, de uns poucos colegas. Mas superou, com sua inteligência e docilidade, as agressões e as piadinhas da turma de trás, que existe em todo colégio. Um dos colegas, filho de rico, implicava com ele a ponto de estirar a perna para ele cair. O irmão mais velho trocou murros com o menino capeta, e os pais foram ao colégio dar uma prensa nele, com o discreto apoio da professora. Depois da prensa dos pais, tudo ficou bem para o menino magricela. O certo é que, com dedicação aos estudos e inteligência, acabou sendo líder de classe.

Mas a paixão do menino era mesmo carrinhos de brinquedo. Como todo mundo sabia dessa predileção, o quarto dele estava sempre atulhado de carros. Os carros menores, que vinham numa cartela com doze unidades, o deslumbravam. Ele punha montinhos de areia em cima do muro baixo da casa de praia — o muro ficava um pouco acima da cintura dele — e fazia os carrinhos passar por cima desses montinhos — em sua imaginação, obstáculos em uma estrada de verdade.

Certa vez, também na casa de praia — na casa do avô, que ficava ao lado da casa dos pais do menino —, aconteceu um fato que deixou todo mundo preocupado: uma amiga da tia do garoto magricela, que tinha um problema nas pernas, deslocou um dos joelhos e tiveram que trazê-la, às pressas, a Fortaleza. Quando saiu o carro com a doente chorando de dor, o menino magrinho, muito sério, informou: Agora vou rezar por ela. — Todos se admiraram, ele não sabia rezar: — Tu sabes rezar? — E a resposta: — Rezo do meu jeito.

Pois foi este menino, que tem nome de rei — IVAN, mas não O Terrível — foi ele quem deu uma aula de linguística ao avô: — Vô, você sabe que real se escreve com e, mas é um e que tem som de i? Eu, que presenciara a cena, virei-me para a mãe do Ivan: Viu, vai ser professor, e professor de Linguística. — Ela, com cara de quem ouviu, viu e não gostou: — Deus o livre! Vira tua boca pro mar.

Eu já havia prognosticado, mais de uma vez, para o futuro do menino, o magistério. E ela, a mãe, reagia do mesmo jeito.

Por quê? Porque ela própria é professora e conhece bem os seixos — melhor um sinônimo mais forte: pedra. Ela conhece, e muito bem, as pedras e as agruras do caminho. E ela não é só professora, mas professora de Linguística e de Língua Portuguesa.

Ivan, hoje, tem 25 anos. Sem ser muito alto, é forte e bonito. Biólogo, com bacharelado e licenciatura, vai encarar o mestrado. Por enquanto, é professor de inglês.

Errei por pouco, não foi não?