DONA OTÍLIA: LEMBRANÇAS DE UMA VELHA INFÂNCIA

DONA OTÍLIA: LEMBRANÇAS DE UMA VELHA INFÂNCIA

Autor: HERIBALDO DE ASSIS

Dona Otília foi a pessoa mais generosa da minha infância – Dona Otília armava presépios sob uma alva areia de praia – presépios que eu tinha a alegria de ver nos natais na humilde casa dela... Dona Otília fazia deliciosas canjicas no São João – canjicas que eu tinha o prazer de provar nos São Joões e São Pedros na humilde casa dela... Dona Otília era uma senhora viúva (o marido havia morrido poucos anos depois do casamento) e ela nunca mais se casou - Dona Otília vivia com a filha dela (que abdicou de se casar para amorosamente cuidar da mãe) , Dona Otília era a avó que qualquer criança gostaria de ter...Nunca conheci mulher mais católica que Dona Otília, nunca conheci pessoa mais católica que Dona Otília: o terço na mão, a velha Bíblia desgastada por tantas leituras, os santos nas paredes, a devoção a Nossa Senhora e ao Menino Jesus (cujo nascimento ela homenageava através dos seus presépios sob alva areia que traziam-lhe da praia justamente para essa finalidade natalícia ). Dona Otília criava papagaio bravo - papagaio que bicava as generosas mãos de Dona Otília, papagaio que queria avançar nas visitas... Mas eu cresci – e , com o decorrer do tempo,somaram-se mais cabelos brancos na fronte cansada e octogenária de Dona Otília - Dona Otília adoeceu – um corte ou uma infecção no pé – descobriu-se que Dona Otília era diabética : a perna foi amputada ...Novamente outra infecção no outro pé: a outra perna foi amputada... Dona Otília na cama, sem poder andar, sem poder armar presépios para a criançada ver e sem poder fazer canjicas para a criançada provar... Antes de perder as duas pernas gangrenadas e com receio de ir ao médico Dona Otília dizia: - Deus vai me curar! Deus vai me curar!... Mas Deus não curou Dona Otília – ela perdeu as duas pernas para a gangrena e morreu algum tempo depois levando consigo seus humildes e encantadores presépios e suas deliciosas canjicas e cocadas que somente ela sabia fazer tão bem – e ela levou consigo também parte da minha velha infância – uma infância que nunca mais retornará. Deus não foi bom com Dona Otília, Cristo não foi bom com Dona Otília, a vida não foi boa com Dona Otília – aquela mulher repleta de fé, simplicidade, generosidade morreu à míngua com as duas pernas amputadas acreditando que Deus iria curá-la (e não curou). E a vida (tal como um papagaio ingrato) bicou as mãos de Dona Otília, amputou as pernas de Dona Otília e fez rolarem lágrimas numa criança de 50 anos- uma criança que agora diz: adeus presépios, adeus canjicas , adeus infância, adeus Dona Otília...

*Escritor,filósofo,poeta,compositor,redator-publicitário,roteirista e Licenciado em Letras pela UESC.E-mail: herisbahia@hotmail.com