CAVALGANDO UMA BICICLETA MUITO MALUCA

Quem, quando guri não morreu de vontade de andar de bicicleta? Pois sou um destes indivíduos que quando imberbe ainda, e não pubescente sonhava com a magrela dia e noite. Implorava insistentemente uma para meu pai, mas ele impassível ignorava as minhas doridas súplicas. No meu tempo, lamentavelmente não tinha ainda a grande motivação de –“Não esqueça de minha caloi”.

A bicicleta povoava meus sonhos. Era uma coisa boa e um tormento ao mesmo tempo. Eu sonhava com aquelas lindas propagandas de bicicletas que apareciam nos jornais e revistas. A sueca Monark, por exemplo, era considerada a rainha das bicicletas e era feito em aço de primeira, acabamento esmerado e cores lindas. Era a preferida do Brasil segundo a propaganda. Era a minha preferida também. A danada vinha com dínamo Hackel para os faróis Riemann e estava acoplada com a bomba pneumática Progress. Uma belezinha. Eu vivia fazendo coleções de recortes destas propagandas. Nos meus sonhos eu já havia andado milhares e milhares de quilômetros deslizando ruas, estradas, vielas e campos. Eu estava perito no assunto em botar a bunda no selim.

Para mim, um estilingue no pescoço, um picuá carregado de pedras na cintura, um pião, umas bolinhas de gude e uma magrela para me carregar era o máximo de minha ambição. Nada mais eu queria. O estilingue, o picuá, o pião e as bolinhas de gude eu os tinha, mas a bicicleta em meio a névoas ficava turva em meus anseios. Quando eu a teria? Martelava constantemente em meu cérebro esta pergunta. Quando?

Um dia vou possuir uma, pensava otimista olhando demoradamente aqueles recortes de propaganda.

Este dia não demorou a chegar.

No meu tempo, todo bom moleque que já sabia ler e escrever tinha que procurar alguma ocupação ou ofício para desenvolver. E lá fui eu aprender o ofício de marceneiro. Tinha 12 anos de pura inocência e muitos sonhos a realizar. Muito mais sonhos e pouca realidade.

Na marcenaria trabalhavam alguns marmanjos, eram os meus professores e a um canto, lá mais para o fundo do barracão, tal qual uma princesa encantada permanecia sempre uma linda e indescritível sueca. Pareceu-me, algumas vezes que ela dava umas piscadelas para mim. Eu acredito que foi amor à primeira vista.

Minha iniciação na arte de construir tranqueiras em madeira estava indo muito bem, mas minha paixão pela sueca aumentava desesperadamente dia a dia. O percurso de casa até a oficina de artes em madeira era bem longo, mas minha motivação em estar lá antes da hora e sair depois da hora era esta linda e graciosa sueca que impassível permanecia lá como se estivesse obcecadamente me esperando. Era uma atração fatal.

Dois tímidos. Eu de um lado fazendo minhas tarefas, jogando de quando em quando um olhar furtivo e enamorado e ela de outro lado, calada, linda me espreitando.

Um dia o dono da oficina me surpreendeu passando a mão nela. Fiquei sem jeito, esperei uma bronca, mas ele simplesmente me disse:

- Cuidado com ela, moleque, ela é minha e sou muito ciumento, mas como sou bastante liberal, se você quiser um dia eu o deixo sair com ela.

Minha alegria foi tanta naquele momento que quis gritar, dar um abraço nele, mas apenas timidamente agradeci.

Isto nos fez, eu e a sueca mais próximos um do outro. O nosso namoro estava cada vez mais forte. Ela era caladona, mas me permitia que eu ficasse ali ao seu lado falando qualquer coisa, sobre mim, sobre meus amigos; Era um bla bla danado sem fim.

A minha paixão pela sueca estava em proporções descomunais. Quando em casa não via a hora de retornar ao trabalho para estar ao lado dela. Os finais de semana me pareciam longos e intermináveis.

O grande momento de realizar o meu sonho chegou! Meus lindos sonhos seriam realidade agora. Vou finalmente andar de bicicleta.

Alguém da oficina precisaria ir fazer uma entrega de uma encomenda qualquer do outro lado da cidade. Eu fui o escolhido.

- Você sabe andar de bicicleta? Perguntou-me o dono da Marcenaria.

Esperei um pouco dei um tempo para responder. O treinamento que fiz nos meus muitos e variados sonhos me pareciam reais. Eu sabia, é claro que eu sabia andar de bicicleta e muito bem. Recompus-me não acreditando ainda na pergunta e de imediato, meio gaguejando respondi.

- Sim, sim eu sei.

Colocaram com cuidado a obra de arte restaurada no bagageiro da bicicleta dizendo-me:

- Cuidado com esta peça, ela é antiga e de muito valor.

- Sim, gaguejei.

- Guri, cuidado com a minha Monark, ela é uma coisa preciosa que tenho, acrescentou o dono da marcenaria.

Finalmente a sueca estava em meus braços e logo logo estaria sob minhas pernas. A minha alegria era tanta que acabei acreditando que sabia realmente bicicletar e com isto tive um orgasmo precoce.

Olhei aquela formosura toda reluzindo de impecável pintura preparada para a missão quase impossível.

Os primeiros 100 metros eu os fiz apenas empurrando a sueca. Fui num monólogo tranqüilo com ela. Queria estar longe das vistas do dono dela no memento sublime de dar à primeira trepadinha. A cidade até parecia que parou para me permitir andar sem problema. Suas ruas em colossal areal se estendiam desertas por quase todo o trecho. Até os cachorros vadios se recolheram.

Criei coragem, mas tremendo de medo frente a uma enorme descida me encavalei desajeitadamente em cima dela. Pareceu-me ouvi-la dizendo:

- Vá com calma meu amor!

Eu estava tarado, estava afoito, na realidade eu era naquele momento o noivo virgem doido pela primeira foda e não atendi ao seu reclamo, comecei a descida em desembalada corrida. Ela gemia sob meu corpo que quase solto queria escapulir.

Meus cabelos soltos ao vento acenavam felizes e eu em início de operação radical começava a suar frio. O medo estava solto correndo lado a lado comigo. Meu anjo da guarda suplicou aos céus e me abandonou. A Monark desgovernada, zig zagueando doida engolia a distância, gritando frases desconexas. Meus pés soltos não encontravam os pedais e o selim fazia bolhas na minha bunda.

A sueca gritava frases de ordem, rebolava toda, mas eu juro que ela estava feliz pela liberdade incondicional que eu estava lhe proporcionando.

Como um peão nos corcovos da mula xucra eu tinha presa apenas uma mão no guidão da desgovernada Monark.

Pouco mais de 50 metros, nada mais do que isto foi palco da mais ousada e radical desembalada corrida ciclística que se tem notícia coroando ao final com um fenomenal acidente.

Um banco de areia ao nos ver doidamente se aproximando gritou, acenou, gesticulou, quis sair do lugar e nos seus braços espetacularmente fomos parar.

A sueca quando colocou seu rodado dianteiro no areal, deu um espetacular corrupio no ar, xingou largando-me em pleno vôo. Planei por alguns segundos e vertiginosamente de cabeça cai. A minha fuça foi a primeira a chegar ao areal vindo logo em seguida a Monark que num baque se enrolou toda em mim para amaciar sua queda.

A logística da entrega foi estancada neste ponto. Apenas 50 metros de adrenalina pura. Foi uma experiência incrível cavalgar numa xucra sueca que acabou culminando na realização do meu sonho – Andar de bicicleta. Desastrosa experiência, mas foi o início. Finalmente andei de bicicleta.

No local uma boa alma me ajudou a se desvencilhar da magrela que toda retorcida prendia-me a ela num abraço funeral; juntou cuidadosamente os pedaços da obra de arte que levava na garupa e me entregou com cuidado.

Eu estava todo empoeirado e sangrando, mas estava muito mais feliz que preocupado.

De repente, recompondo-me um pouco bateu loucamente em minha memória a recomendação:

- Cuidado com esta peça ela é uma obra de arte e de muito valor. Cuidado com a minha bicicleta, ela é bla e bla e mais bla.

Comecei a chorar desesperadamente reunindo os restos mortais da obra de arte e juntando do areal maldito a linda sueca toda retorcida.

- O cara vai me matar, pensei eu, enquanto caminhava de volta.

Pensei em fugir, desaparecer deste mundo, mas criei coragem e continuei o meu regresso. Como um bom empregado, ao emprego estou retornando.

Ao chegar de volta com aquele monte de ferro e lata retorcida disse ao dono da marcenaria:

- Fui atropelado e não me lembro de nada.

A sueca, no seu último suspiro teve forças e me deu um beliscão pela mentira. O dono da marcenaria, esbravejou, vomitou impropérios e quando quis me bater desmaiou caindo espetacularmente ao chão.

Mudei de cidade, fui para o seminário e até hoje não tive coragem de ir lá receber o meu salário.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 14/07/2017
Código do texto: T6054802
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