O herói

E veio aquela doçura em forma de menino com uma raia e um amontoado de fios, que em algum momento já fez parte de um carretel organizado, num pedido para uma solução. Vendo o emaranhado de fios me deu vontade de puxar com força, arrebentar, jogar fora aquele enrosco e unir as partes limpas, mas dei para a paciência mais um voto de confiança e pensei só no próximo nó sem me preocupar com a missão que parecia impossível de desenrolar aquela confusão do fio em suas idas e vindas, voltas e passagens por dentro e por fora ora estrangulando, ora dando uma volta larga.

Lembrei de um passado remoto onde a dona Gertrudes, uma senhora idosa que morou uma época conosco me salvava quando o cadarço do meu conga dava um nó cego que parecia impossível se dissolver, isto é claro até este nó ver nas mãos daquela senhorinha um grampo de cabelo que, umedecido pela saliva, arranjava uma forma de entrar no meio e com jeito separar aqueles fios que na minha concepção infantil já estavam fundidos um no outro para todo o sempre. Ela me entregava o tênis liberto, livre para calçar as minhas aventuras, passaporte para a alegria própria de uma criança que vive um mundo do imaginário. Minha satisfação vazava num rosto feliz e agradecido e via no dela um sorriso encabulado de uma boca banguela. Ficava imaginando se ela ficava feliz com uma sensação de “ainda posso ser útil para alguma coisa”. Absorto neste pensamento fui desenrolando o fio e era como se uma janela com diversos voais fossem sendo descortinados, deixando cada vez mais claro o quarto e tornando cada vez mais nítido o contorno do que estava lá fora, aumentando a expectativa e a certeza de que a qualquer momento iria acontecer a mágica e veria a olho nu, arretado de excitação, um mundo maravilhoso.

Enquanto ia desatando os nós, ia enrolando numa lata cilíndrica de azeite, garantido que o trabalho não se perdesse

Olhei para o último nó e para o menino, só para certificar-me de que ele estaria acompanhando o “gran finale” – ele estava atento, seus olhos arregalados gritaram de admiração, eu me senti um verdadeiro herói, quase que falei que na falta de vento poderia deixar comigo que eu levaria sua raia lá nas nuvens, mas me contentei em ser um super-herói terrestre. Acho que agora eu sei como se sentia a dona Gertrudes, digo a Super Gertrudes.

(Se esta história tivesse uma trilha sonora agora no fundo poderia estar aumentando o som de Superman

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Boa noite.