O interlocutor de mim

O dia estava cinzento, havia cheiro de fumaça no ar. Um ar rarefeito e seco mantinha o céu nublado, nuvens brancas se espalhavam por todo o céu azul acinzentado, em alguns pontos aqui e ali, guardavam elas grande quantidade de água que a qualquer momento cairiam sobre a terra tornando mais verdes as colinas e mais árido o meu coração!

Era uma manhã de inverno indeciso, uma dessas manhãs onde a natureza não se define, parece que esfria, mas mantém o calor do sol entre as nuvens que não desaguam, embora mantenham uma ameaça inerente.

Aqui, no recôndito das minhas percepções, no lado de dentro de mim que somente o eu do meu eu conhece, pergunto-me: - Porque falar, se manifestar: - Expressar o que sentimos é crime e pensar é um caos? Será mesmo que neste tempo de regime militar todos temos que ser como cópias de um único pensamento? Seria o homem um ser para ser “xerocado”, ou teria ele a liberdade de sentir, pensar e agir de acordo com suas habilidades e percepções?

- Caríssimo, você nunca foi muito ligado, ou digamos, nunca desejou absorver o que acontece à sua volta como verdades inquestionáveis, e neste momento presente, as circunstâncias que o rodeiam carregam uma ordem primária estabelecida por um governo imperativo que o leva a ser como um “autista” do seu próprio universo.

- Você diz isso, porque não sabe como me sinto! Dentro da minha atuação, seja profissional ou pessoal, carrego uma conquista elevada das minhas realizações, não compreendida e não aceita por uma maioria que vive na periferia do próprio entendimento resignados às vivências comuns.

- E onde está o problema das vivências comuns? Replicou meu interlocutor, ao que respondi prontamente:

– Está no fato de eu não ser essa pessoa conformista, não nasci para fazer o que todos fazem, não cheguei nesse momento presente da minha história para escrever o mesmo poema, para responder as mesmas perguntas e menos ainda, para viver achatado e condicionado ao que esperam de mim! Se fui convocado para viver, serei o melhor nos limites das minhas vivências, serei o espetáculo mais aplaudido, serei o artista das diferenças, e ainda que as mesmas me coloquem sob o julgamento rude do contexto, serei eu.

- Não te parece, que pensando assim e agindo assim, atrai para si mesmo a rejeição dos que não tem a mesma força, a mesma garra? Não te incomoda que tais pessoas, por sentirem-se diminuídas, possam lhe querer “puxar o tapete” para que você perca o chão onde pisa?

- Ah meu caro, meu chão não é areia movediça, são pedras e pedras construídas ao longo do meu caminho! Podem puxar o meu tapete, mas jamais conseguirão mover meu chão. Sinto muito que haja pessoas inadvertidas quanto a vida, procurando o conselho e a opinião de terceiros, pessoas que necessitam de aprovação para ascender. A mim, considero apenas que preciso saber quem sou e o que sou capaz de ser, e nessa premissa escrevo minha história, que aliás, tem sido promissora.

- Você “se acha” não é? Vestido como um astro do rock, ora com calça vermelha, ora azuis, sapatos plataforma camurça, cintos dourados ou prateados, cabelos longos, é assim que você chega às reuniões corporativas causando impacto, irreverência, parece até que o faz de propósito para chamar a atenção, para agredir, para enfrentar uma tradição e normas pré estabelecidas instigando, nos outros, a própria aversão!

- Engano seu, repeli veementemente, não o faço para impactar, nem mesmo o faço para quebrar regras, apenas sou quem sou e isso, por eu não ser o que esperam que eu seja, impacta, estremece toda uma corporação acostumada a mesmice!

– E como poderia não me achar? Considerando que o homem é aquilo que dele mesmo se percebe e vê... eu sou o máximo! E porque assim me acho, assim me achando sou e vivo, e conquisto cada dia mais o meu espaço sendo eu mesmo, em detrimento de muitos outros grandes empresários que só tem um objetivo na vida: Ganhar dinheiro! Suas percepções de vida giram em cima de cifrões, vestem-se como todos, pensam como todos, são cópias perfeitas e fiéis do materialismo convencional construindo uma sociedade onde o ter suplantava o ser.

- Eu quero estar bem, mas ganhar dinheiro simplesmente não é o meu maior objetivo, quero sim ganhar dinheiro, mas sem perder meus ideais, sem me corromper por um regime estabelecido, mantendo minha consciência e minha vida nas minhas mãos e não nas mãos do que pensa a sociedade, como se dela dependesse toda a minha realização pessoal.

-Posso até instigar sentimentos menos nobres dos que me rodeiam, mas quando abro os relatórios altamente satisfatórios que carrego orgulhosamente embaixo dos braços para as reuniões, todos se dobram nos julgamentos, não podendo indeferir contra os resultados obtidos, ainda que de forma extravagante e irreverente.

Este dia acinzentado, que nubla o céu nesse inverno indeciso, não consegue nublar a minha história, as percepções que tenho da vida, da minha vida, e os acontecimentos que me cercam ao longo do meu caminho, indicam que, ainda que eu não veja, o sol brilha e aquece o planeta acima das nuvens carregadas, e é este sol de considerações e atos que aquecem igualmente meu coração tornando minhas lembranças e memórias o ponto convergente entre mim, e o eu de mim!

- Ainda compenetrado em minhas lembranças, chego ao dia que recebi da companhia um prêmio por ter sido, na minha região, o representante que mais vendeu óleos lubrificantes e graxas automotivas em todo o Brasil! Lá vou eu, três dias de férias na ilha de Pacaraima e mais uma calculadora “Texas Components”, tem ideia de como me senti? Se antes disso eu já “me achava” agora eu não tinha mais dúvidas... Eu era “o cara”.

Viajei de avião pela primeira vez na minha vida, um Electra 2 da Varig, destino ao Rio de Janeiro.

Que fato curioso! Eu que trabalhei cliente a cliente, recebi o prêmio e fiquei hospedado num hotel chamado Serrador, na Cinelândia, e, obviamente, meus “chefes” ficaram no Copacabana Palace!

Agora eu pergunto: - Como se sentiu com essa disparidade de valores?

– Eu sequer me dei ao trabalho de questionar sobre valores, até porque, com o recebimento do prêmio, o valor de quem sou e o que faço já são provas e alicerce da minha capacidade e valor, o que suscitou em muitos outros, uma “dor de cotovelo” danada, mas e daí?

Histórias, lembranças, memórias, mas o que é nossa existência sem elas?

Concluo hoje que pensar é e será sempre um crime, porque pensar ameaça, transforma, renova e forma opiniões.

O passado é visto hoje como algo insignificante, mas ele é por certo, o Curriculum Vittae de toda uma geração, é da soma dele que fazemos as descobertas do nosso hoje, construímos o presente com pessoas, relacionamentos, lembranças, memórias, fatos estes que não são imaginários.

As experiências que ao longo do caminho construímos são a realidade da experiência enquanto humanos e continuarão vivas plasmando, plastificando ao longo do tempo e do espaço a frase: “Aqui vivo eu, e aqui me enraízo e faço-me ainda que em circunstâncias adversas”.

Chove fora e dentro de mim, um inverno que parecia indeciso se manifesta agora nesse tempo e nesse espaço de considerações, onde a recordação é a mais vívida companheira e entendo que sem ela, eu seria apenas como um barco antigo atracado à beira de águas paradas sem contexto e sem destinação segura!

Uma Homenagem a meu irmão: Oto P. Corrêa

RACHEL IN CONCERT
Enviado por RACHEL IN CONCERT em 30/07/2017
Código do texto: T6069162
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