O enterro

Todos ainda estavam abatidos com a morte da Dona Mazé. Ela era uma morena com traços bonitos e marcantes, apesar dos maus tratos da vida. Sua pele tinha uma textura aveludada e seu olhar delineava transtornos e imposições vividos. Era enérgica e também uma costureira de mão cheia. Foi uma das primeiras moradoras da vila e diziam até que morava ali por gosto e não por falta de melhor lugar.

As crianças sempre passavam correndo pela pequena e estreita viela onde Dona Mazé morava. A casa, bem pequena, abrigava um quarto, cozinha e um banheiro, que ficava ao fundo, do lado de fora.

Há também uma pequena varanda, onde ela cerzia e pregava os botões das roupas feitas sob encomenda e quase sempre no fiado. Os pequenos paravam na porta do pequeno cômodo onde ela passava parte do dia, para receber os biscoitos ainda quentes, que ela os distribuía.

Fazia isso com afetividade e a cada um que dava o biscoito ditava: Tenha tenência e sempre respeite sua mãe, ouviu? Dona Mazé, por obra do destino, não pôde ter filhos. Fora todas as incumbências, ela ainda lavava as camisas do time de futebol do bairro, o Asas, que vinham toda segunda-feira, após as peladas na várzea. Quando chovia no domingo Dona Mazé já tinha ideia do que encontraria no próximo dia. Ciço era o porta voz do time e sempre que trazia as camisas prometia, que um dia, pagaria pelos serviços, mas por ora o time ainda tinha dificuldades até para o transporte em dia de jogo.

As meninas também vinham sempre e traziam tecidos e umas poucas rendas, ainda sem nenhum esboço ou criação. Dona Mazé as olhava e ia desenhando numa pequena folha os traços que vinham da sua imaginação, ancorados nos olhares cheios de vitalidade e apreensão das pequenas. Elas se transformavam. As meninas saiam sempre com os corações cheios de uma alegria de fazer inveja.

Agora, Dona Mazé já não mais cerzia... não mais lavava as fardas do time de futebol e os meninos já não corriam pela pequena viela. Foi-se com uma velocidade espantosa. Correu a boca pequena que foi dizimada por um câncer. Metástase.

A paroquia, a igreja evangélica e o terreiro de Umbanda da vila uniram-se. Dona Mazé era unanimidade. Haviam umas 300 pessoas velando o corpo, um culto improvisado, orações, a reza do terço e giras de Umbanda cantados e riscados. As crianças perguntavam as mães o que estava acontecendo e porque não podiam brincar de queimada no terreno baldio em frente.

Zé Honório não foi visto no velório. Já tinha caído na boca do povo. Dona Mazé o amava. Preparava para ele, quando de volta das intermináveis viagens de caminhão pelo Brasil, o baião de dois, que ele jurava ao pé do ouvido dela, nas noites tórridas de amor, que a iguaria era de comer de joelhos e rezando alto de tão bom.

O enterro saiu da sede da pequena escola de samba em direção ao cemitério. Houveram discussões de quem levaria o caixão. Dona Mazé ficaria aperreada com a confusão, mas Ciço, depois de um empurra empurra dissolveu o furdunço e tocou o enterro com mais cinco jogadores do Asas.

O trajeto até o cemitério foi combinado naquela hora. Não iam passar por algumas vielas por conta da quantidade de pessoas, assim, foram caminhando pelas ruas mais largas e por onde haviam pequenos comércios.

O sol estava à pino e Zé Honório estava num boteco, sem camisa, apenas com uma bermuda e chinelos de dedo. Meio bêbado, meio triste, jogava dominó com amigos e ao ver o enterro se aproximar, jogou as pedras na mesa, levantou-se e foi caminhando até a porta. Ao passar a procissão, com o caixão, naquele momento ele abaixou a cabeça, fechou os olhos e fez o sinal da cruz. Em segundos voltou para dentro do boteco, pegou as peças do dominó jogadas à mesa e prosseguiu com o jogo. Seu parceiro na rodada, fixou os olhos em Zé Honório e disse: Não sabia que o cabra era assim, religioso! Zé Honório lentamente levantou os olhos e disse com serenidade: É o mínimo que posso fazer depois de 31 anos de casado.

Leonardo Boaventura
Enviado por Leonardo Boaventura em 10/08/2017
Reeditado em 18/09/2017
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