Dia dos Pais (para chatos)

Dia dos Pais, uma dessas datas que une a fé consumista a muitos simbolismos sociais ligados aos sexos... Ou seja: uma data perfeita para despertar o chatinho dentro da gente que um dia leu qualquer coisa sobre a construção social dos gêneros (mas não uma data tão perfeita quanto o Dia das Mães, e muito, muito menos perfeita do que o Dia Internacional da Mulher).

Tirando de lado a justa manifestação de carinho e respeito pelos pais (que, como toda manifestação de carinho e respeito, acredito, não deveria ter data marcada [clichê, eu sei]), restam as propagandas e suas associações, hum, suspeitas.

Debaixo das letras garrafais de ‘Promoção Dia dos Pais!’, seguida de alguma frase genérica a respeito do amor entre pai e filho(a), nos panfletos de lojas abundam furadeiras, ferramentas, pneus, cortadores de grama, churrasqueiras, e tantos outros inventos testosteronizados. E, preferencialmente, em fundo azul, que azul é cor de homem, né? A julgar por estes panfletos, fico pensando que ser pai tem mais a ver com ser versado em técnicas e habilidades instrumentais do que com qualquer outra coisa – e ao lembrar da resistente repartição desigual do trabalho doméstico, a coisa até que faz um (triste) sentido.

Além das propagandas, algumas campanhas bem-intencionadas soam, hum, suspeitas.

Recebi no e-mail. “Não basta ser pai, tem que participar”. Puxa, legal, legal mesmo; se essa frase tão simples fosse levada a sério, não precisaríamos ser (tão) chatos em datas como a presente. Mas aí… “E na natureza não é diferente!”. Se você já leu sobre a construção social dos gêneros, sabe que puxar para a natureza não é a saída mais antenada com o que as ciências sociais vêm demonstrando faz décadas.

A campanha continua sugerindo que seja clicada a característica mais marcante do seu pai. São apenas quatro, e cada qual, ao ser clicada, remete a algum animal e ao seu instinto paterno. E logo entendemos o título da campanha: “Instinto de pai é tudo igual. Descubra!”.

Felicidade: falamos tanto de instinto materno, mas agora já se assume que existe instinto paterno (e é voltado a criar positivamente os filhos, não apenas para perpetuar a espécie através do máximo de úteros que conseguir alcançar [ooooh!]).

Tristeza: ainda falamos de instintos.

Pois se é verdade que os tais instintos maternos, via de regra, são a desculpa para a sobrecarga da responsabilidade feminina sobre os filhos, deve ser verdade que instintos paternos, em alguma curva, vão derrapar.

Exemplo: a visão de que o instinto paterno deve ser despertado, cultivado, estimulado no homem (o que me parece um tanto contraditório, além de muito conveniente [aos homens, é claro, como se naturalmente isentos de responsabilidades sobre os filhos]).

Voltando à campanha… Claro, entende-se um apelo brincalhão, suave, até mesmo humorístico, que é para desbaratinar a intenção principal da campanha (seu fundo e contexto ecológicos). E há presença do subversivo pai Cavalo Marinho, rotulado como um pai que é uma mãe, pois “é o macho que dá a luz!” (cruz-credo-sinal-da-cruz).

Porém, a associação à natureza, e pior ainda se via instintos, sempre cria pressões e supostas normalidades, especialmente no tocante à criação dos filhos (como a mítica felicidade e realização que uma mulher teria que sentir [obrigatoriamente, e caso não sinta, então que se sinta culpada e anormal!] ao ser mãe). As mulheres bem sabem dessa pressão insalubre, os homens ainda não – mas se é injusto que elas saibam, não tenho certeza se seria justo que eles começassem a saber também (por que não desconstruir nas duas direções?).

Até a Boticário, que ultimamente veio se mostrando mais arejado nas questões de gênero, parece ter dado uma escorregadinha (pode ser chatice exagerada agora, mas vá lá). Que, na propaganda, o pai é um veículo para o filho ter acesso às mulheres, acesso simbolizado pelo perfume que o pai usa e transmite-se ao filho pelo abraço. Uou, haja simbolismo aí hein! Tipo um lance do patriarcado original no qual, um dia, o filho precisa matar o pai se quiser ter acesso direto às mulheres, e não às rebarbas que o macho alpha lhe permite ter. Será que ano que vem o filho completa o Complexo de Édipo?

Tentativas humorísticas minhas à parte, enclausurar imagens de heterossexualidade na relação pai e filho, como o padrão natural, pode causar um pequeno (e justo?) desconforto numa época em que tanto se tenta abrir horizontes para imagens mais desconstrutoras e humanamente inclusivas. Mas, ok, eu sei, chatice exagerada...

E, para fechar, os supermercados. Pois todo pai que se preze é um carnívoro de primeira – são as promoções típicas de Dia dos Pais, junto com todo o aparato de churrasco (olha a churrasqueira de volta aí!). Infelizes são os pais vegetarianos, que pagam o mesmo absurdo pela berinjela, a despeito da data comemorativa.

Mas foi na fila do supermercado, ainda, que testemunhei a relação pai e filho ao vivo e a cores, fora das propagandas, campanhas e sugestões de panfletos promocionais.

O filho, pequeno, se muito 8 anos, enchia a paciência do pai para comprar um chocolate não-sei-o-que-lá. E o pai, pacientemente, compreensivamente, tão macio quanto o pão de hamburguer que estava sobre o engradado de cerveja, tentava explicar que não compraria o chocolate porque a mamãe tava fazendo uma sobremesa em casa. E vi nas olheiras daquele pai, na cara tomada de sono dominical, e no jeito forçadamente calmo com que dava a negativa ao filho, que, não fosse hoje dia dos pais, e portanto o dia em que todos lhe abraçariam festivamente, bem, esse pai teria sido muito menos paciente, compreensivo e macio.

E não há culpa nisso. Humanos criam humanos, e o fazem sujeitos a todo o tipo de contradições humanas. Há picos de afeto, picos de frustração. E essas contradições não inviabilizam os bons pais, mesmo que às vezes ocasionalmente precisem se teatralizar, como suspeito ter ocorrido ali no mercado.

E tudo isso é assim, mesmo que imagens midiáticas e sorridentes deem a entender que o pai é espontaneamente feliz até quando recebe o carro batido na manhã de domingo (ou coisa que o valha, só que menos classe média). Datas como o Dia dos Pais teriam a ganhar se nelas fosse reconhecida a humanidade das pessoas, não a imagem socialmente aprovada.

Mas tá, chega, paro por aqui. Já pedi licença pela chatice, seria descaramento pedir licença para tiradas filosóficas. Então, com a licença das chatices encalacradas nas linhas acima, deseja-se um feliz dia dos pais.