A SEMENTEIRA DA MEMÓRIA

Ah, valha-me Deus Pai! Eis que acabo de rememorar a infância pobre e feliz no arrabalde do Areal, proximidades do canalete do Arroio Pepino, na Princesa do Sul, idos da década de 50 do séc. XX. Todo o final de mês, cada um dos cinco monckinhos do primeiro-sargento de milícia Joaquim Moncks – o pai – disputavam a unhas e dentes o honroso encargo de comparecer a um dos poucos bolichos fortes do bairro e pagar a conta de caderno, lá na venda da esquina, o Armazém Boca do Lobo, do Seu Aldrovando e Seu Gladis, agradáveis manos da família Almeida, ocasião em que sempre nos davam algum agradinho de "inhapa", uma especiaria a cada mês – só pra não viciar – diziam quando perguntados diziam quando perguntados: por que tão poucas e de um único tipo. Ali os doces moravam em potes de vidro de vários tamanhos empoleirados uns sobre os outros, em cima do longo balcão de granitina negra com pontinhos claros. A doçaria toda vizinhava com a enferrujada balança Filizola verde, com todos aqueles pesos de vários tamanhos que mais pareciam no seu conjunto um parquinho de diversões, tendo, no pátio, gozados e imóveis homenzinhos gordos de cabeça pequena e seus filhos de todos os tamanhos, parecendo carrinhos de brinquedo. Tudo isto entreverado com os queijos, o torresmo a granel, o charque dependurado ao alcance da mão, imensas linguiças e morcilhas pretas e brancas que mais pareciam os muçuns do Arroio Pepino, que apareciam somente nas férias de verão. Antes do balcão havia de se passar por entre as tulhas de açúcar, arroz, milho, erva-mate, farinha de trigo e mandioca, bolachas quebra-queixo, todas elas aparentemente limpas e bem assentadas no tabuleiro de madeira ao rés-do-chão. Por baixo, quando em vez, um camundongo qualquer se escafedia aos nossos pés descalços, lambendo furtivamente o veneno espalhado em latinhas vazias de pasta de sapatos nugget. Por fim, com os olhos esbugalhados, bichas e vermes nos intestinos pedindo muito açúcar, chegávamos aos esconderijos – tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe de nossas mãos sujas de tanto jogar bolinha-de-unha. Agora sim, estávamos dentro da mina açucarada: balas de hortelã, quebra-queixo, de goma ou sete-belo com sabor de morango, caramelos, pirulitos, rapadurinhas de leite e amendoim, os gostosos palitos puxa-puxa (que a rapadura puxa grande era proibitiva ao bolso do pai, que só trazia tijolinhos de goiabada e mandolates) e os apreciados doces com brilhosos aneizinhos dourados, que quase sempre levávamos para a Dona Teresinha, a mãe exemplar, rígida e exigente, tão explorada em suas duras tarefas, meio estropiada por cinco gestações vingadas e uma falida. Era uma maneira de dar a suas mãos o ouro que não tínhamos. Também para agradecer a imensa paciência de nos aturar nas brigas e nos alaridos cotidianos do pega-pega, esconde-esconde, das pandorgas nos fios da eletricidade e o rude, porém inocente jogo de futebol no campinho de defronte, onde, da cintura pra baixo tudo era válido, desde que houvesse possibilidade de se chegar a caminho do gol. Havia também as juvenis descobertas. As danadas das gurias, seus encantos misteriosos e os peguinhas às escondidas, enquanto se trocava gibis de histórias em quadrinho e se marcava ponto na matinê (que era curiosamente a sessão vespertina), aos domingos, no Cine Avenida. E aí rolava algum tímido beijinho e se tentava alguma ousadia mais afoita, que não ia além do sutiã rendado que escondia o miserável fetiche do explícito sexual. Mais além, no escurinho do cinema, só algum toque e tentativas do desejado beijo de língua, quando a parceira já adquirira alguma prática nos jogos do amar. Num cantinho, o Duda e o Milico davam-se as mãos e faziam antecipadas juras para o dia seguinte: no carrascal de carrapichos – que era a cama nupcial dos desejosos proletários. Também havia o tal de cigarro feito com filtro amarelo ou branco, que diziam menos prejudiciais à saúde. Ninguém mais queria saber do Elmo, do Belmonte, do Hudson, do Continental. À exceção do Zico, um cara lá do interior de Canguçu, que sempre tava mal dos pilas e em causo de percisão, fumava até as baganas deitadas ao chão à entrada do cinema. E as guimbas babadas tinham de aguentar a semana inteira. Depois, com o passar dos dias, tudo foi se esfumando e aprendemos mentiras piedosas, só pra enganarmos a nós mesmos no mundo dos fatos. Enfim, tudo se torna muito igual depois dos verdes anos. Mais que tudo, a memória é um pássaro-semente, que voeja lerdo sobre infantes alegrias sobrepostas à saudade viva que ficara dentro das tulhas espalhadas à entrada do Armazém da Boca do Lobo. O Absoluto arfava em nós já naquele tempo.

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 1978/2017.

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