Lágrimas de cãs

17 de fevereiro de 2015

Hoje fui ao meu torrão de nascimento ver o rastro da chuva de ontem.

A vegetação verde e as árvores sombreando o chão molhado me deu uma saudade de quando morava lá.

Vivi naquele torrão 17 anos desde que nasci. Hoje com 43 ainda sinto saudades de lá, principalmente quando vejo o verde-esperança cobrir a negridão e o amarelão deixados pelo fogo solar nos meses de estiagem. Verão para nós.

Na casa em que moravam meus avós vi um gatinho chorando e o cão de estimação deitado no terreiro como se esperasse o dono voltar. A cerca que termina na parede da casa está caída dando a entender que aquele pedaço de chão está abandonado. A roça brotada, as ateiras floradas prometendo uma boa safra de atas caso o inverno persista. As palmas crescendo e as tamarineiras verde-amarelas devido ao tom das folhas com as flores convidam a ficar um pouco mais. Não só a ficar, mas a morar mesmo depois de 25 anos morando fora dali. E as sirigueleiras verde-escuro com alguns botões já crescidos. Este foi o panorama que meus olhos viram hoje cedo quando visitei a antiga morada de meus avós.

Mas, meus olhos viram coisas mais emocionantes que isso. Meu avô foi comigo, aliás, o convidei ontem à tarde pra irmos hoje, pois depois que eles vieram morar na cidade, perto de mim, vivem mais em casa, pois não podem sair sozinhos.

Ao chegarmos na antiga morada meu avô conversou com seu cão a quem ama como se fosse uma pessoa querida. O animal ao nos ver se contorcia todo de contentamento. Ao abanar a calda, não só a calda era abanada, mas todo o corpo acompanhava o balançar do rabo tamanha era a alegria. Meu avô ficou comovido com a cena do animal e lamentou o fato do bicho não se acostumar na casa de seu filho no Olho Dágua onde mora com sua esposa. Embora meu tio já o tenha levado duas vezes, ele insiste em voltar mesmo sabendo que na casa não há ninguém para o alimentar.

Mais adiante uma gatinha chega miando como se tivesse triste. Não era de fome, pois os gatos pegam pássaros e outros animais como lagartixas e calangos bem como ratos e preás se os encontrar. Era mesmo de tristeza pelo abandono que herdou de seus donos quando partiram, pois não puderam levá-la dada a brabeza do animal.

Também ficou uma galinha, da qual meu avô sentiu falta e procurou tentando vê-la mesmo sem poder por sua cegueira natural. Caminhamos dentro do quintal da casa, verificou um pano velho que minha avó havia deixado e lavou uma panela velha entirnada, que vovó deixou no terreiro da cozinha e verificou o orelhão deitado no chão cheio de água da chuva. No quintal arrancou um pé de chanana. Coisa que sempre fez na agricultura ao capinar arrancando o mato com as mãos e sempre ao passar dentro da plantação arrancava um ou outro arbusto que crescia isolado dos outros e atrapalhava o desempenho do feijão ,milho ou roça (mandioca).

Conversávamos sobre o novo morador que vem residir à casa, seu sobrinho que mora em Trairi e saímos para irmos à casa de outro sobrinho que mora perto de sua casa.

Ao sairmos, vi pelo retrovisor da moto que vovô enxugava os olhos azuis de 86 anos. Confesso que isso me doeu demais vendo meu velho chorar e não poder enxugar suas lágrimas como eu gostaria. Aliás, gostaria de não ver as lágrimas do meu avô. Elas são preciosas demais e devem ser guardadas para ocasiões de tristeza.

E isso não é tristeza? Ora vejamos.

À viagem de volta para casa voltamos mudo. Não conversamos nada. Eu meditava em sua tristeza e ele mergulhado nela.

Nasceu naquele torrão e em 86 anos saiu uma vez só e passou apenas 6 meses ausente quando voltou e nunca mais saiu. Hoje meu avô entende que não pode mais morar naquele lugar por causa de suas limitações físicas. Os dois filhos que tem a quem podia contar para terminar os últimos dias difíceis da vida numa fagulha de alegria, a de morrer no torrão em que nasceu, teve esta fagulha dissipada e apagada pelo vento das circunstâncias, pois estes filhos não têm a sensibilidade e a compreensão necessárias para embalar os velhos pais na rede da velhice até que a morte os ceife como a um grão amadurecido na espiga no fim do inverno.

Moravam sós, dormiam sós e se adoecessem ficariam ali até que alguém fizesse uma ligação ou chegasse para visitá-los. Eles não sabem fazer uma ligação a ninguém. Isso me preocupava muito, mas sei eu que aquele lugar para eles é como o céu para Jesus. Insubstituível.

Mas, as torres do meu avô estão estremecendo e já não o pode sustentar. Seus soldados não conseguem mais lhe guardar com segurança e suas janelas estão fechadas à luz do dia. Às pessoas conhece por voz ou por identificação nominal. Mesmo assim ainda tem resistência para ir ao comércio de bicicleta, 4 quilômetros de casa, mas suas janelas não lhe permitem ver o luto da estrada para divisá-la. Essas dependências obrigaram meus avós deixarem o pedacinho do céu deles abandonado e a mercê de quem quer que seja. Ainda bem que um sobrinho aceitou vir morar para dar aos meus avós a satisfação de saber que sua casinha não está abandonada. Ao sair de lá dizia ele que quando o Gonzaga chegar há de alimentar seu cão.

Seus filhos não lhes deram a alegria de deixá-los morrer ali, tampouco quiseram morar na casa que é sua por direito de herança. Que belos filhos têm os meus avós.

Agora penso nas noites que meu avô passa a dormir e que vez por outra acorda e seus olhos lacrimam-se nas madrugadas da velhice quando a noite tem a capacidade de nos tornar mais sensíveis e debilitados. Quantas lágrimas já rolaram desses olhos de 86 anos que não dão ao vovô o sabor de ver, mas que lhes permitem que a tristeza saia pelos poros lacrimais convertendo-se em saudades infinitas em que a vontade de voltar para aquele lugarzinho medíocre só aumenta a cada dia que passa, medíocre, mas o melhor lugar do mundo para eles.

Minha avó é reservada e ninguém vê suas lágrimas. Ela chora pra dentro o que é pior.

Penso que meus velhos amadurecerão mais cedo de tristeza e a morte os ceifará antes do tempo ou esse processo apressará o tempo que já está determinado pelo criador.

Vendo essas coisas e refletindo neles penso nas palavras de Jesus a São Pedro: anda enquanto podes, pois dias virão em que te levarão aonde não queres ir. Esta é a sina dos viventes. Como sempre diz o meu avô em sua vasta sabedoria: quem não morre novo de velho não passa. Esta é a certeza que temos. O que não sabemos é se nossos filhos nos honrarão em nossas cãs.

CARLOS JAIME
Enviado por CARLOS JAIME em 23/08/2017
Código do texto: T6092398
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