SITUAÇÕES DA VIDA - A PROCISSÃO

Situações da Vida

A Procissão

Mês de Abril, tempo de páscoa, isso me fez lembrar de um episódio acontecido comigo no período da quaresma, aquele compreendido entre a quarta-feira de cinzas até o domingo de Páscoa.

Pois bem, recém chegado no novo endereço. Uma bela casa num bairro com características ainda rurais. Oportunidade para fazer coisas que antes faziam parte apenas do desejo, da imaginação.

No caminho até a Vendinha onde ia comprar o pão matutino, percebi que havia na rua tranquila onde morava mais gente do que o normal àquela hora da manhã. Seis da manhã de um domingo de Abril.

No princípio pensei tratar-se de fim de festa em uma casa da rua que costumava ser alugada para eventos barulhentos de música eletrônica que corriam pela madrugada toda até o início da manhã. Entretanto, havia gente mais velha caminhando pela rua e a direção era inversa. Como todos iam para a mesma direção que a minha, resolvi acompanhar para saber do que se tratava.

No final da rua somente uma pontezinha sobre o riacho para se chegar até a venda que ficava dentro de uma comunidade. As pessoas que acompanhava se juntaram a outras que estavam numa pequena aglomeração no início da ponte do lado de cá. Reparei que havia um carro de som e um padre chegando em cima de uma mula ou burro, não sei!

Do que se tratava tudo aquilo? Um monte de gente idosa, um outro tanto de gente nem tão idosa assim e alguns jovens. Mais mulheres do que homens. Tanto no grupo de mais idade quanto no de menos idade. E, lá estava o padre montado na mula ou burro falando com as pessoas ao seu redor.

Perguntei a uma senhora que estava próxima a mim sobre o que se tratava tudo aquilo. Ela disse que era a procissão de ramos. Fiquei olhando tudo aquilo. O que antes era algo em torno de umas trinta pessoas, em poucos minutos, o tempo suficiente para eu atravessar a ponte, comprar meu pão e retornar, já tinha para mais de sessenta pessoas. E, o padre continuava em cima da mula ou do burro.

Tomei, então, uma decisão: iria participar da procissão. Nunca havia tido tal experiência. Nem mesmo havia tomado parte daquelas procissões preguiçosas que são feitas dentro da própria igreja. Era cedo, o bairro ainda estaria dormindo, portanto, as ruas vazias de pessoas e carros. Ninguém iria me ver seguindo a procissão.

Como estava de bermuda e camiseta, apressei o passo em retorno à casa para vestir-me adequadamente para a ocasião. Calça jeans e camisa de manga comprida. A manhã estava friazinha e parecia não prometer que esquentaria muito.

Em menos de 15 minutos já estava na rua novamente e indo em direção ao ponto de partida da procissão. Devido ao passo apressado, cheguei um tanto esbaforido ao grupo que ainda estava se formando e já contava com o dobro, pelo menos, de fiéis.

Procurei pelo padre e lá estava ele já posicionado à frente do séquito sobre sua montaria.

O carro de som já estava tocando uma canção religiosa. E, quase todo mundo segurava como se fosse um estandarte precioso, um ramo novo de palmeira. Queria um também! Uma senhora distribuía os ramos. Um tanto envergonhado hesitei em aproximar-me da mesma e pedir o meu. Quando me decidi ir ao encontro da velha pude ver que o último ramo em suas mãos havia ido parar na mão de um senhor que pela idade duvidava que chegaria ao final do cortejo ainda com vida.

Olhei para o relógio e comecei a ficar apreensivo. Já passava das sete da manhã. A esta hora, o mercadinho já estaria aberto, a banca de jornal, idem. Mais um pouco o açougue levantaria as portas, assim como a loja de material de construção. Ia ter mais gente na rua e o risco de ser visto seguindo a procissão era enorme. Vou desistir! Pensei! Não! Tenho que prosseguir. Convenci-me!

Mais vinte minutos e o séquito começou a andar. O padre em cima da mula ou burro parecia um Dom Quixote liderando um ataque imaginário, pois levantara o braço e com um gesto vigoroso para a frente deu início à procissão.

Voltamos pela rua em que morava. Para minha sorte, minha mulher ainda devia estar dormindo e não haveria o risco dela me surpreender no meio do crente povaréu. Os vizinhos também não costumavam levantar cedo, somente os caseiros de uma ou outra casa é que àquela hora poderiam estar limpando as calçadas. Mas, como era domingo, as calçadas já haviam sido limpas e varridas no dia anterior. Portanto, era bem provável que conseguiria passar incólume pela minha própria rua.

Após quase um quilômetro de rua, cantando canções sacras, interrompidas a cada vez para a recitação de um Pai Nosso e uma Ave Maria, estávamos chegando à estrada principal que nos levaria à igreja. Mas, ainda faltava o meu ramo e eu precisava dele. Alguns fiéis que se juntaram à procissão no caminho, na maior cara de pau arrancavam ramos das palmeiras ainda jovens e baixas plantadas no canteiro central da rua. Não ia fazer esse tipo de depredação nas árvores e ainda mais estando em minha própria rua. Nesse momento baixou em mim espírito de pichador. Arte só na parede da casa do outro, na minha não!

Escutamos uma buzina. Abrimos espaço para o carro inconveniente e desrespeitoso passar. Era uma caminhonete que trazia mais ramos para distribuição. Ela passou por mim e quando dei pelos ramos tentei alcançar um, como fiéis mais espertos e rápidos fizeram, mas não deu tempo. Porém, quando o cortejo parou mais uma vez para as orações, rezando consegui alcançar a caminhonete parada e retirar um ramo. Pensei em pegar mais um para a minha mulher, mas então ela ia ficar sabendo que eu havia participado de uma procissão. Minha mulher poderia ficar muito bem sem o ramo, até porque nem católica ela era, justifiquei-me.

Com o ramo firmemente em minhas mãos, coloquei-o à frente como se fosse uma lança e fui cantando com o povo, disfarçadamente.

A estrada principal já estava com bastante gente e que não participava da procissão mas que ficava nos olhando com piedade cristã como se fôssemos um bando de carolas perdendo uma linda manhã de Domingo de sol. Aliás, a linha manhã de sol começava a esquentar mais do que o normal. Já começava a transpirar sob a minha camisa de manga comprida fechada até o penúltimo botão próximo ao colarinho. O calor já incomodava mais do que o devido. Discretamente quando as pessoas sacudiam os seus ramos, eu aproveitava para sacudir o meu, mas como um abanador. Ajudava um pouco, não muito, mas ajudava. Abri mais um botão da camisa, depois outro até liberar a parte superior do peito. Era uma tentativa de abrandar a quentura daquela manhã dominical.

A procissão havia alcançado o mercadinho. Por causa do movimento dos carros, umas três ou quatro pessoas da procissão com vocação para guardas de trânsito, começaram a gesticular e gritar com os carros para desviá-los do grupo andarilho. Até apareceu um apito e eu não sabia onde enfiar a minha cara. Todo mundo sobre as calçadas olhando para a gente. E, o padre em cima da mula ou burro, sentindo-se talvez um John Wayne suburbano, só lhe faltava uma arma na mão a atirar para o alto conduzindo a boiada. Nesta altura o ramo em minha mão servia-me também como máscara.

Sem exagero, já estávamos há mais de hora andando e parando, cantando e rezando sob um sol sacana de inclemente. E, a igreja que não chegava nunca. O que chegava era mais gente nas calçadas olhando-nos com cara de espanto. E, o padre lá em cima, se realizando como Cowboy de Cristo!

Eu só pensava na igreja. Em como seria bom chegar àquele oásis de meditação, fé e tranquilidade para descansar do calor abrasivo e recuperar-me do estresse da vergonha.

Finalmente, depois de mais uns trinta minutos entre paradas e recomeços, uma cantoria terrível e quase um terço inteiro rezado, adentramos pelo pátio da igreja. Já desconfiei olhando o estacionamento. Estava abarrotado de automóveis. Tinha até guardador. Um não, mas uns três! Eu ainda de forma otimista tentei pensar de que seriam os carros dos seguidores da procissão que ali foram deixados para facilitar o regresso de seus donos quando a missa terminasse.

Que nada! O interior da igreja já estava abarrotado de pessoas. Não havia mais um espaçozinho sequer nos bancos. Até para ficar em pé estava apertado. Aquilo era uma verdadeira visão dantesca. O sacrifício não era do Cristo, mas daqueles que seguiam a procissão! O calvário iria continuar lá dentro! Fazer o quê? Em pé fiquei! Esperávamos todos pelo início da missa. Mas, cadê o padre? Será que ele ia entrar na igreja montado na mula ou burro. Aí não! Pensei! Seria um sacrilégio! Imagina se o animal depois de tanto tempo se controlando desse vazão ao curso natural de seu intestino?! Acho que o padre cowboy não iria arriscar tanto.

Mas eis que de repente ele adentra pela nave central do templo caminhando lentamente, seguido por uma fila de fiéis das pastorais da paróquia.

Ao final de uns cinco minutos ele alcançou o altar. A missa iria começar. Mais um padre e um diácono se acercaram dele e uma dezena de coroinhas. O evento prometia!

Com o joelho já dando sinais de que a dor estava chegando, a coluna incomodando, o ombro machucado latejando e o suor escorrendo pela testa, lá estava eu participando pela primeira vez de uma missa da abertura da semana de Páscoa. Mais canções e canções. Qualquer rito era introduzido por uma música. Cada uma pior do que a outra. Aquelas músicas que não se conhece a letra e a melodia é insossa. Então, eu ficava olhando para o altar e tentando decorar algum verso, mas impossível pela acústica complicada que a maioria das igrejas católicas possui.

Após uma hora e meia contada no relógio, a missa chegava ao fim. O rito final após as várias mensagens do sacerdote, todos no interior da igreja em sinal de respeito, deveriam esperar pela saída do mesmo. Outros cinco minutos modorrentos até a saída do celebrante. Eu estava bem próximo à saída. Mas, fui obrigado a esperar por quase toda a igreja sair atrás do padre para que eu pudesse sair, também!

Cheguei a casa um pouco depois das dez da manhã. Minha mulher estava assustada, pois eu havia deixado o celular em casa e ela não pôde contatar comigo. Não foi preciso maiores explicações de minha parte e ela se contentou com o meu ramo que lhe dei de lembrança. Ela falou que iria pendurá-lo na janela do quarto, pois que era ótimo para proteção de raios e trovões.

Luiz Alberto Gaspar de Vasconcellos