O fantasma de Nietzsche

No cruzamento da grande Avenida, a visão de um par de tênis enroscado nos fios de alta tensão, chamou a atenção de Nietzsche.

Seus dedos finos se perderam entre o colossal bigode.

A lua refletiu seu rosto mostrando um sorriso que considero ingênuo, mas sei, dentro daquele corpo magro, atrás dos bigodes medonhos, repousa uma fera.

De repente, pergunta: “Consegue ouvir o barulho dos coveiros enterrando Deus?

Finjo que não o compreendo, formo dúvidas na testa, já não sei se ele está falando em português ou se sou eu que compreendo alemão.

Ele insiste: “Gott ist tot! ”“. Ah, meu bom amigo, você não contava com a fé cega dos incautos! - respondo e o fantasma de Nietzsche sorri.

Depois completa, armado numa voz baixa e rouca: “Quando disse Deus, me referia ao homem” ele responde afinal, colocando fim às minhas dúvidas.

Certo é que esse meu amigo sempre teve a vocação dos abismos.

Chegamos enfim à feira central.

Ele assovia “The boxer” do Simon and Garfunkel.

Firmei meus olhos naquele corpo magro no qual se destaca o pomposo bigode.

“Não há fatos eternos, como não há verdades absolutas” ele diz, me arrancando um suspiro.

Depois dá de ombros e cumprimenta todos os garçons que se postam na frente das barracas armados com cardápios coloridos.

Mas eles não o enxergam.

De repente faz o par de sobrancelhas dançar na testa: “como esvaziamos o mar? Como apagamos o horizonte?” Ele pergunta e não sei responder.

Oh senhores do destino, porque não me enviaram Fernando Pessoa?

Uma senhora cruza o nosso caminho armada num rosto de espanto, como se fosse a única a enxergar o fantasma ao meu lado.

A mortalidade de nós humanos estava escancarada no rosto daquela mulher.

A cadeira da banca me aperta, faz lembrar que estou num processo irreversível de obesidade.

Nietzsche não tem esse problema, se encaixa perfeitamente entre o banco e a mesa, faz um sinal em minha direção e sei que quer comer sobá.

Quando a comida chega, seus olhos brilham e ele come com voracidade - a cena do macarrão triturado na boca pequena, avançando sem limites entre os bigodes espessos, jamais haverei de esquecer -.

Acho que Nietzsche, ao menos depois de morto, deveria raspar aquele bigode ridículo.

“Humanos, somos demasiado humanos” afirmou entre uma garfada e outra.

Depois que se fartou, saímos caminhando pela feira.

Seus olhos atentos registravam tudo, quis saber como é que um bolo pode ser chamado de sopa; contei que era coisa dos paraguaios e ele quis saber quem eram os paraguaios.

Um trio armado de harpa, sanfona e viola, no canto final da feira, me salvou e ouvimos, encantados, os acordes e a voz maviosa do senhor grisalho ao centro: “Que dulce encanto tienen tus recuerdos mercedita, aromada florecita, amor mio de una vez...” e meu amigo ficou tão encantado que de seus olhos gotejaram duas pontas de lágrimas: “e aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”.

Caminhamos mais um pouco.

Logo se deteve diante de uma garrafa de cachaça exposta num balcão do corredor. “vamos beber” ele disse.

Nem quis lhe contar daquela bebida, tão forte que queimava a garganta, sabedor que meu amigo bebia litros de absinto quando era vivo.

Depois do susto inicial, bebeu mais três ou quatro goles e seus olhos ficaram vermelhos.

Na saída, uma chuva fina compunha o ritual de despedida.

Acompanhei seus passos indo se perder no brilho fosco dos trilhos mortos, desaparecendo aos poucos no poço ao centro da rotunda.

E lá se foi, feliz, e eu fiquei esfregando os olhos com as duas mãos, absorto na imagem final daquele indecifrável delírio.